Talvez nenhum escritor tenha pressentido, ainda no auge da modernidade, o significado de uma realidade que se imporia tempos após sua morte, e que se substancializa de forma dramática nos dias pós-modernos do século XXI.
Em Kafka se faz sentir, com uma intensidade desenhada em Dostoievski, o sentido trágico da vida, sem nenhum Cristo exemplar. O senhor K., personagem sem nome, apenas uma inicial que adota em quase todos os seus escritos, simbolizava o seu sentir só, despersonalizado num universo agressivo e irracional, apenas lógico nos lucros e no poder que a todos se impõe. De onde a absoluta ausência de fraternidade, do individualismo extremado, do consumismo absoluto, que trás apenas conforto imediato e que logo após, se esgota e requer mais e mais. Um mundo em ruínas em que as utopias, a religiosidade autêntica e as ilusões humanistas naufragaram.
O isolamento do homem de seu habitat, as notícias instantâneas (hoje, as mídias sociais), o pavor imediato, o desenraizamento social. Em Kafka já antevemos o ser humano coisificado, desumanizado, de nossa sociedade líquida. Daí a alienação e a brutalidade física e psicológica, o conflito entre pais e filhos, o surgimento de personagens com missões aterrorizantes, labirintos burocráticos e transformações místicas que se aprofundam.
Com isso, a vida privada dos homens médios, da economia à cultura, por perfeitamente enquadrados e passivos, torna-se absolutamente manipulável. São obrigados a consumir o que interessa aos oligopólios.
O capitalismo tardio e a insegurança intrínseca a ele acarretam uma angústia dissociativa, que se mantém graças a permanente oscilação entre o terror e esperança, aliados ao coletivo que atua como rebanho.
Enfim, para Kafka a arte não é um meio para recuperar o tempo perdido (como o fora para Proust) ou desafiar o destino (no caso de Malraux), mas sim, uma descrição objetiva do absurdo. No auge do modernismo ele expressa um humanismo que se revolta, pois antevê um futuro espírito totalitário no horizonte da humanidade.
Franz Kafka nasceu em Praga em 1883 e faleceu aos 41 anos de tuberculose. Estudou Direito na Universidade de Praga onde conheceu seu grande amigo – posterior biógrafo e depositário de sua obra – Max Brod.
Depois da escola, conseguiu emprego em uma companhia de seguros, atividade que odiava. Começou a escrever contos no tempo livre. E pelo resto da vida, reclamou do pouco tempo que tinha para o que chegaria a chamar de “seu chamado”.
A relação turbulenta com o pai- opressor e com a mãe, que não o acolhia, tiveram enorme influência sobre sua escrita. Sofreu por ser judeu numa família judia, ele que era ateu, e que sentia que nem as crenças e menos ainda a raça tinham pouco a ver consigo mesmo.
Kafka adolescente e adulto levou uma vida sexual ativa e complicada. Duas vezes noivo, não conseguiu se casar. Frequentador assíduo de prostíbulos, a mulher aparece em sua obra como objeto de satisfação imediata, ou como um meio para obter concessões num mundo sem sentido.
A importância do ambiente de Praga, cidade medieval gótica, uma mescla de elementos eslavos e alemães, influencia sua obra pelo traço barroco e sombrio que inspira. À época, a política de Praga era dominada por Viena, o paraíso dos burocratas. Desse modo, o mundo dos funcionários burocratas do Império Austro-Húngaro se assemelhará ao dos próprios pais, feito de degradação, estupidez e imundície.
Franz cedo frequentou os círculos literários e políticos da pequena comunidade judaica alemã, na qual circulavam ideias e atitudes críticas e inconformistas, com as quais Kafka se identificava. “Tudo o que não é literatura me aborrece, e eu odeio até mesmo as conversas sobre literatura”.
Em vida, muito pouco de seu extenso trabalho foi publicado. Confiou no leito de morte seus calhamaços de escritos ao amigo Brod, com uma recomendação: “Tudo que eu deixar deverá ser queimado sem ser lido, até à última página.” Por sorte da humanidade, Brod logo após a morte em 1924, se apressou a organizar e buscar edição para os trabalhos.
Mas, talvez o desejo de Kafka antecipasse uma profecia terrível. Na Alemanha e na Áustria, primeiro seus livros foram confinados às livrarias judaicas e, posteriormente, condenados e queimados em praça pública, pelas SS Nazistas. Quando, ao final da Segunda Grande Guerra, a Tchecoslováquia foi ocupada pelas tropas soviéticas, os livros de Kafka foram novamente proibidos! A primeira edição dos mesmos somente viria a ocorrer no bloco soviético, com o advento da Glasnost, sessenta anos após a morte do autor. Afinal, os regimes tornados totalitários conheciam perfeitamente o poder da literatura do jovem judeu!
À medida que o mundo real foi se assemelhando ao imaginário kafkiano, ele foi-se tornando o escritor por excelência de uma idade de trevas, aquele da banalidade do mal.
“Carta ao Pai”
“Os pais que esperam gratidão de seus filhos (inclusive os há que a exigem) são como agiotas; eles até gostam de arriscar seu capital, contanto que recebam juros por ele”.
Diante do predomínio da manipulação do relacionamento humano a família na sociedade perde aquela condição de refúgio contra a dureza e a desumanidade de um mundo dominado pelos interesses monetários. Ela se dissolve e delega suas funções a “comunidades” massificadoras e massificadas. “Éramos tão diferentes e nessa diferença tão perigosos um para o outro, que se alguém quisesse calcular por antecipação como o filho e tu se comportaríeis um em relação ao outro, poderia supor que tu simplesmente me esmagarias sob os pés, a ponto de não sobrar nada de mim.”
A imagem do pai aparece sempre como fonte de repressão da individualidade. “Ao teres uma panorâmica geral da justificação do medo que tenho de ti, podias responder algumas questões… A isso respondo que, antes de mais toda esta resposta […] não parte de ti, mas de mim”.
Como o Pai, na visão de Benjamin na sociedade reificada, é sempre a figura que pune, talvez a carta – que foi escrita e reescrita – não tenha sido nunca enviada, uma vez que o remetente coincidia, afinal, com o seu destinatário. O pai é outro nome do sintoma-Kafka, “o pai interno”, tão imundo e sujo em suas roupas íntimas quanto os funcionários e burocratas do Estado.
“Metamorfose”
Uma das poucas obras publicadas em vida do autor. Gregor Samsa é um homem comum, conformista, sem os anseios de ascensão social de um Rubempré (Balzac), de um Roskholnikof (Dostoievski). Está imerso em sua privacidade, sendo o sustentáculo familiar, ao qual se agarram os parasitas sob o comando paterno. De repente, é abatido pelo infortúnio, metamorfoseia-se. Os parasitas que dele viviam se revoltam.
A precariedade da segurança como valor e objetivo de vida se expõe! Toda esperança de segurança no mundo pós-modernos é tão somente uma manipulação, mentira!. Gregor, parasita metamorfoseado, tenta inutilmente retornar à forma humana.
Mas ele nada mais é que um estranho no meio familiar, enorme inseto. E quem, mesmo inconscientemente, quebra as regras da manipulação é punido com a marginalização!
A figura punitiva é do pai. Até a irmã, que inicialmente lhe fora solidária, se desumaniza ao começar a trabalhar para manter a família, substituindo-o.
Finalmente, somente com a morte de um Samsa desolado, a família respira aliviada e se rearranja.
“Amerika”
Ou “O Desaparecido”, é, na definição de Borges, a inconclusão fundamental de Kafka! Aqui o “herói” tem nome e sobrenome: Karl Rossmann. O livro é a descrição de instantâneos, com a triste situação do sujeito e o seu desaparecimento como indivíduo na grande cidade que representa o conglomerado humano caótico da pós-modernidade.
O personagem central é o próximo de um anti-herói clássico, por ser um burro-de-carga, o alienado perfeito, o Rossmann! Vive um inferno que a cada dia se recompõe, numa atividade incessante para o nada. Rossmann homem, era também ross (cavalo), um animal. E que por sonhar em ser engenheiro, embarca com um destino: América do Norte.
E na América, K.R. torna-se um homem sem história e sem caráter. Constantemente volta a ser julgado e condenado: inicialmente na sua cidade natal, onde fora banido pelo tio, posteriormente por conhecidos, empregadores e até pelos “amigos”.
Embora tanto a cidade de N.Y., quanto um senhor Green, o capitalista, possuam uma dimensão atordoante, o romance possui um “happy end”! Aliás, o único final “feliz” numa obra kafkiana. É quando surge o “Teatro de Oklahoma”, no qual o talento de qualquer ator não conta: cada um deve apenas interpretar-se a si mesmo, sem imitações! Representando seus papéis os atores procuram um abrigo no teatro ao ar livre sem um diretor de espetáculo, tal quais os de Pirandello (“Seis atores em busca de um diretor”).
Para muitos é a única oportunidade de salvação, e mesmo sem que signifique uma recompensa outorgada à vida, constitui a última oportunidade de evasão do nada! “Eu imitava porque era a última saída, por nenhuma outra razão.”
Atenção: no Teatro de Oklahoma existem vagas para todos! Lá os atores são servidos em enorme mesa, “alegres e excitados”. Para celebrar, desempenham o papel de anjos em altos pedestais. “Sem as asas postiças talvez fossem anjos de verdade”.
O romance termina nas cerimônias campestres de Oklahoma. No mesmo local em que, coincidentemente, principiarão, décadas após, as “Vinhas da Ira” de Steinbeck.
“O Processo”
Benjamin associa K. e os acusados à Scherazade nas “Mil e uma Noites”: adiar o que estava por vir, com a quase certeza absoluta de que virá. Sempre, entretanto, no mundo kafkiano persiste uma esperança dos acusados, desde que o procedimento judicial não seja a própria sentença que se arrastará por toda a vida!
“Alguém certamente andava espalhando mentiras sobre Joseph K., pois, sem que ele fizesse nada de errado, foi detido em certa manhã.”
O mundo de Kafka é um universo primitivo, onde a culpa é como um pecado original. Ora, toda acusação é sempre uma falsidade, embora o personagem acusado jamais diga que a acusação seja injusta, mas que necessita se defender!
Os processos, a que as pessoas comuns como K. são submetidas, permanecem sempre pendentes. A causa jamais é explicitada. Na verdade, nenhuma causa torna-se mais suspeita do que aquela para a qual o pai de Joseph K. pretende obter a solidariedade dos funcionários e empregados da Justiça! Ou seja, a tentativa de defesa já constitui uma suspeita que recai sobre o réu!
Empregados, funcionários e juízes são infinitamente corruptos e, no mundo kafkiano, assim como na pós-modernidade, é em sua venalidade que repousa a única esperança que um acusado pode manter de manter-se vivo, subornando e submetendo-se, embora eternamente sob judice.
Os Tribunais de “O Processo” possuem seus códigos e leis, mas eles não podem ser vistos. Talvez jamais tenham sido escritos, porque “faz parte desses tribunais condenarem não apenas réus inocentes, mas também réus ignorantes”.
Deste modo, como num mundo primitivo, todos podem transgredir as regras sem o saber, e é no retorno à pré-história que a burocracia e a escória pós-moderna mantêm seu domínio.
Na busca por livrar-se do processo, embora sem saber daquilo que o acusam, o jovem K. encontrará jovens tímidas, jamais belas, sempre ligadas a advogados e juízes e que se revelam devassas. Acontece que a imagem feminina de Kafka liga-se a um sexo que sempre “é sujo”, do qual ele tenta tirar vantagens.
A beleza não se encarna nas mulheres. Somente a encontramos entre os acusados. “O processo que adere a seus corpos os torna mais belos.”
Para o amigo Max Brod neste livro “Kafka dizia que somos nós próprios pensamentos niilistas, pensamentos suicidas que surgem na cabeça de Deus”.
Resta uma pergunta ao final da leitura de “O Processo”: existiria esperança fora do mundo de aparência que conhecemos?
Kafka responde: “ Sim, infinita esperança, mas não para nós”. A esperança, num mundo do absurdo, existe para os “ajudantes”, para a massa amorfa, os inábeis e inacabados, os manipuláveis.
No livro inacabado, o senhor K. terminará sendo executado num beco escuro, por agentes sem identificação. Antes de morrer ele que pede a incineração se incluía entre os condenados ao fracasso. O sr. K. Seria “morto como um cachorro- era como se a vergonha fosse sobreviver.” (última frase de “O Processo”).
“A Colônia Penal”, e as câmaras de tortura.
Um Explorador que, durante a visita a uma colônia penal francesa, provavelmente em alguma colônia, presencia o sistema empregado na execução de um soldado acusado de insubordinação.
Ele constata que o sistema que havia condenado à morte o soldado não permitia que o acusado tivesse direito à defesa. E que a “justiça maquinal” é um instrumento de tortura que escreve lentamente sobre a pele, com agulhas de ferro, a sentença do crime que, muitas vezes, o criminoso nem sabe que cometeu.
O Oficial, que comanda a execução, fala da máquina como se falasse de um “deus”, que requer cuidados e perícia para ser manejada, tanto para torturar quanto para matar todo aquele que fosse condenado pela burocracia.
Quando o soldado condenado estava para receber o suplício, o Visitante diz ao Oficial que o método não o convenceu: “O condenado não apresentava sinal algum da redenção prometida. O que outros teriam encontrado na máquina acabara por lhe ser negado. Os lábios se achavam apertados com firmeza, os olhos abertos, com a mesma expressão que tinham quando vivos, o olhar seguro de si, convencido. Apenas a testa se achava perfurada pela grande agulha de ferro”.
“O Castelo”
“Pode um funcionário perdoar? No máximo a administração, como um todo, poderia fazê-lo, mas provavelmente ela não pode perdoar, somente, julgar”.
Um agrimensor chamado K. é chamado por um Conde nunca especificado para prestar serviços. Contudo, por mais que tente K. não consegue entrar no Castelo, para onde fora chamado, e não se conforma em não prestar os serviços contratados.
Aquele Castelo está repleto de funcionários imprevisíveis, mesquinhos e gananciosos; ele mesmo, como construção, está conformado contra um estranho céu. O passatempo preferido dos burocratas consiste em brincar com homens, sendo que estes existem para servi-los, e que, sob nenhuma hipótese, têm razão.
é o protagonista, um inconformado que quer trabalhar para o que foi chamado. Ele tenta mudar as regras de um mundo submetido na alienação. “Não quero favores do Castelo, mas trabalhar para o que fui chamado.”
As principais personagens, além do agrimensor, são algumas mulheres, como Frieda, uma balconista do bar do albergue dos senhores que comandam o Castelo; além dela, Amélia e Olga, irmã de Barnabás, sapateiro e responsável pela ligação do Castelo com a Vila; e, finalmente, Klamm, alto funcionário do Castelo.
Frieda, amante de Klamm, se aproxima de K. que a atrai fisicamente. Ela busca sempre recordar-se de sua vida passada, antes do domínio exercido pelo sexo pelo sexo, mas depara-se com o agrimensor a quem nada disto interessa. Transam, mas a cópula entre eles se dá em meio à sujeira, embaixo do balcão, por onde escorre vinho e até mesmo sangue.
Amália, por seu lado, é aquela que não se dobra as propostas sexuais dos funcionários, sendo por isso mesmo marginalizada e punida pela própria comunidade manipuladora em que se insere.
O Castelo é mais um romance inacabado de Kafka, mas nele encontramos enormes recursos satíricos sobre um mundo dominado por burocratas. E, neste mundo irracional, as coisas se complicam. O destino dos homens parece estar sempre subordinado a regras vazias!
Buscamos nesse rápido ensaio chamar à atenção para o fato de que ler Kafka é de se perder o fôlego! E que seguir lendo-o, corre-se o risco de se enredar num mundo sem sentido, do qual será difícil se desenredar, e, mesmo assim, continuaremos lendo… absorvendo cada palavra sem poder degluti-la, mas seguiremos absorvendo!
É sentir-se num mundo opressor e sem objetivos, onde nada é o que parece ser, podendo, até mesmo, ser. Um mundo absolutamente sem amor e sem a intenção do amor!
É estar num universo social em que se busca sobreviver a todo custo; é a sobrevivência daquele que rasteja como uma forma de não revoltar-se.
Um universo de medo e desamparo! Da autoridade desprovida de justiça, essencialmente imoral!
Um viver sem lógica, sem encanto, sem esperança. Este é o mundo kafkiano. Situamos-nos em algum lugar do mesmo?