Ao escrever “A Peste”, ainda sob o impacto dos horrores da Segunda Guerra e da luta de libertação argelina, Camus associa ao absurdo, “que não se encontra no homem e nem no mundo, mas na coexistência entre ambos”, uma surpreendente solidariedade que surge entre os seres exclusivamente em momento de extremo estresse, como aquele vivenciado em presídios políticos nos governos totalitários e ditatoriais, nos campos de concentração, assim como nas ações de matar e morrer quando das guerras.
Camus participou da Resistência Francesa ao nazismo até a libertação em 1944. Foi editor do jornal “O Combate”. Em 1951, rompe com Sartre, ataca o socialismo real e a própria perspectiva do comunismo. Em 1957, durante a guerra de libertação argelina ele, que defendia uma saída negociada, recebe o Prêmio Nobel de Literatura. Ao recebe-lo, Camus ressaltou que: “Perante tantos horrores um artista não pode conformar-se com uma diversão sem alcance, com a perfeição formal. Ele falará no vazio se não se voltar para as misérias da humana”.
Que o artista moderno é um rebelde que pinta a realidade vivida e sofrida. E que para falar a todos é necessário falar também do prazer, do sol, da necessidade, do desejo, da luta contra a morte, mas falar a verdade! A arte não é nada sem a realidade e sem a arte a realidade não valeria à pena. A arte é uma rebelião contra o mundo tal como ele é. Nem negativa total, nem consentimento total. Daí que o objetivo da arte não é julgar, mas compreender. “Advogo por um verdadeiro realismo contra uma mitologia talvez ilógica e mortífera e contra um niilismo romântico, burguês ou pretensamente revolucionário”.
“Tradicionalmente a esquerda tem sempre lutado contra o obscurantismo, a injustiça e a opressão”. Considerava-se de esquerda, porém uma esquerda libertária, sem amarras.
“A Peste” é a vida em comunidade. Oran, uma cidade imaginária na costa argelina, é acometida por uma impossibilidade: um surto de peste bubônica na segunda metade do século XX! O sentido figurado de A Peste também podemos vê-lo refletido no Brasil dos tempos de Bolsonaro.
É bem verdade que Oran, num sentido oposto ao de nosso País, era um lugar modorrento, previsível nos negócios e nos costumes. “Oran é feia… Como imaginar, por exemplo, uma cidade sem pombos, sem árvores e sem jardins, onde não se encontra o rumor de asas e nem o sussurro de folhas. Em resumo, um lugar neutro”.
“Uma forma cômoda de travar conhecimento com uma localidade é procurar saber como se trabalha, como se ama e como se morre. Na nossa cidade tudo se faz ao mesmo tempo, com o mesmo ar frenético e distante. Nossos concidadãos trabalham muito apenas para enriquecerem…, outros para somente sobreviver. Os homens e as mulheres se devoram rapidamente, no que se convencionou chamar de ato de amor, ou se entregam a um longo hábito a dois… O mais original é a dificuldade que se tem de morrer. O doente fica muito só dada a importância dos negócios e a qualidade dos prazeres. Logo, Oran é uma cidade inteiramente moderna…”
O Brasil anteriormente aos anos do Golpe de 2016 era igualmente um País repleto de problemas, contradições, abusos e a seu modo, perfeitamente moderno.
Um primeiro rato morre com hemorragia, depois outros e outros, aos milhares; por fim os ratos moribundos desaparecem da cidade. Logo a seguir morre o primeiro ser humano. “A imprensa tão indiscreta no caso dos ratos, não mencionava nada a respeito dos humanos. É que os ratos morrem na rua e os homens em casa. E os jornais só se ocupam das ruas.”
A descrição dos sintomas, das dores, das mortes que se acumulam é realizada minuciosamente e sem “piedade”. A administração pública que insiste em esconder o flagelo até que não seja mais possível fazê-lo e a cidade inteira entra em quarentena, como se sitiada fosse e os isolamentos internos são instituídos.
“Os flagelos, na verdade, são comuns, mas é difícil acreditar neles quando se abatem sobre nós… disse-se então que o flagelo é irreal, um sonho mau que irá passar.” “Mas nem sempre ele passa e, de sonho mau em sonho mau, são os homens que passam e os humanistas em primeiro lugar, pois não tomaram as suas precauções”.
Em “A Peste”, o que mais interessa ao autor é mostrar como se comportam as pessoas quando começa a ruir tudo o que elas acreditavam ser sólido: os intercâmbios, as relações familiares, as comunicações, a saúde, num transformar cidadãos em exilados do mundo. “Como poderiam ter pensado na peste que suprime o futuro, os deslocamentos, as discussões?” Ora, os homens julgavam-se livres, mas nunca alguém será livre enquanto houver flagelos.
E o fascismo é um flagelo!
E como se comportaram os “oranianos”? Inicialmente, quando os portões das cidades são fechados pelo isolamento, os laços de amor e amizade estreitam-se, numa espécie de exílio a que todos são confinados. “A partir de então, reintegrávamo-nos à nossa condição de prisioneiros e estávamos reduzidos ao nosso passado e ainda que alguém fosse tentado a viver no futuro, logo renunciava ao experimentar as feridas que a imaginação finalmente inflige aos que nela confiam… Assim experimentavam o sofrimento profundo de todos os prisioneiros e exilados, vivendo com uma memória que não servia para nada… Impacientes com o presente, inimigos do passado e privados do futuro”.
Exílio que, gradualmente, também nivelará as pessoas, encurtando as distâncias sociais. “Porque a peste se tornava assim o dever de alguns, ela surgiu como realmente era, isto é, o problema de todos”.
No princípio, quando as pessoas julgavam a peste uma doença qualquer, a religião tinha muito prestígio, os sermões do Padre Paneloux eram extremamente concorridos e ele convocava todos a se arrependerem, a buscarem o perdão divino. “Mas quando viram que o caso era sério, lembraram-se do prazer e toda a angústia que se pinta durante o dia nos rostos, dissolve-se ao crepúsculo, numa espécie de excitação desvairada, numa liberdade desajeitada que inflama todo um povo”.
Camus presta muita atenção ao amor entre os amantes e também ao valor da amizade: “A peste é preciso que se diga, tirara de todos o poder do amor e até mesmo da amizade. Porque o amor exige um pouco de futuro e para nós só havia instantes… Ao mesmo tempo, a peste suprimia juízos de valor”.
De tal forma que, quando “já não havia destinos individuais, mas uma história coletiva que era a peste, os sentimentos eram compartilhados por todos”. E é essa dor que devolve o valor e a força aos sentimentos. “Há sempre alguém mais prisioneiro que eu- essa era a frase que resumia a única esperança possível”.
Quando casas de empesteados foram fechadas ou incendiadas por motivos sanitários, começaram os saques. “Foram incidentes que forçaram as autoridades a assimilar o estado de peste ao Estado de Sítio e aplicar as leis decorrentes”. Na peste e no exílio decorrente, tudo se sacrifica à eficácia de medidas que evitem a disseminação do mal.
A solidariedade humana.
O comportamento de determinado grupo de pessoas que se dedicará à luta contra a peste será o da mais estrita solidariedade. “Era uma luta resignada, mas persistente, ao mesmo tempo ilimitada e sem ilusões”, aquela travada pelos homens que providenciavam o isolamento sanitário dos doentes e a quarentena dos familiares, assim como um mínimo de atendimento às vítimas da peste.
A solidariedade é simbolizada por pessoas como o Dr. Rieux (que ao final se identifica como o narrador do episódio), um ateu e que dá tudo de si no combate ao flagelo apenas para “estar bem consigo mesmo”. Quando um popular disse que ele não tinha coração, Rieux para e reflete que coração ele o tinha, pois lhe servia para suportar as vinte quatro horas por dia, nas quais via morrer homens que haviam sido feitos para viver.
“O que eu odeio é a morte, é o mal. E quer queira, quer não, precisamos estar juntos para combatê-lo”.
Para o narrador o heroísmo tem sempre um papel secundário perante a necessidade de luta pela felicidade, e “o hábito do desespero é pior que o próprio desespero”. O que restava ao médico ao qual não era dado salvar vidas, pois a peste era mortal? Tão somente “descobrir (o flagelado), ver, descrever, registrar, depois condenar e ordenar o isolamento”.
A solidariedade também é representada pelo padre Paneloux. Ele inicialmente acreditava que a peste havia sido enviada por Deus como castigo para os pecadores da cidade. Quando acontece a morte sob intenso sofrimento do pequeno filho do juiz Othon, se dará o momento de sua ruptura com o tradicionalismo da aceitação e da submissão.
Paneloux diz a Rieux: “Isto é revoltante, mas talvez devamos amar o que não conseguimos compreender”. Retruca-lhe Rieux: “Eu vou recusar até a morte esta criação divina em que as crianças são torturadas”, numa reprodução do diálogo sobre a revolta, entre Aliosha e Ivan Karamazov.
Tarrou, um estrangeiro em Oran, é um artista revoltado que atua lado a lado com Rieux criando brigadas sanitárias; ele deseja trabalhar pelo próximo como “um santo”, um santo sem Deus, sem a fé. “Já que a ordem do mundo é regulada pela morte, talvez convenha a Deus que não acreditemos nele e que lutemos com todas as forças contra a morte, sem erguer os olhos para os céus, onde ele se cala”.
Em determinado momento, ele confessa a Rieux que a epidemia não lhe ensinava nada. “Sei de ciência certa que cada um traz dentro de si a peste, porque ninguém no mundo está isento dela”. “O que é natural é o micróbio. O resto, saúde, integridade, a pureza, é um efeito da vontade, vontade que não deve jamais se deter. O homem direito é o que não infecta ninguém, que tem o mínimo de distrações possíveis. É bem cansativo ser-se empestado, mas é ainda mais cansativo não se querer sê-lo… pois, é necessário, tanto quanto possível, permanecermos fora do flagelo”.
“Eu me coloco no lado das vítimas, em todas as ocasiões, para limitar os prejuízos. Por meio delas posso procurar a paz”.
“A Peste” é um livro profundamente humanista feito por quem se recusa a aceitar a injustiça do Universo. No silêncio eterno dos espaços infinitos ouvem-se somente os gritos das vítimas.
Os homens devem permanecer uns ao lado dos outros quer por egoísmo, quer por santidade, mas tomando consciência dos sentimentos essenciais de amor, amizade e solidariedade. Uma solidariedade que se traça como uma ponte entre moribundos e condenados. A mesma solidariedade que une os homens em perigo e que se desfaz como bruma em tempos de paz.
No dizer do crítico de Camus, no espírito mesmo do autor juntam-se Rieux e Tarrou, na vontade de ser um santo sem Deus e no desejo de cumprir com seus deveres de cidadão do cotidiano.
Chega-se a um ponto em que a epidemia regride, a cidade começa a se recuperar, o isolamento é levantado e tudo se esquece. Os ratos voltam a surgir vivos e espertos. “Pode-se dizer que, a partir do momento em que a mais ínfima esperança se tornou possível para a população, o reinado efetivo da peste havia terminado”.
Entretanto, “todos os cidadãos estavam de acordo em pensar que as comodidades da vida passada não voltariam e que era mais fácil destruir que reconstruir”.
A libertação que se prenunciava tinha um semblante misto de sorriso e de lágrimas. Tarrou será a última vítima a morrer de peste. “Tarrou perdera a partida como ele mesmo dizia, mas o que Rieux ganhara afinal? Lucrara apenas por ter conhecido a peste e lembrar-se dela, conhecer a ternura e lembrar-se dela também. Tudo o que o homem podia ganhar no jogo da peste e da vida era o conhecimento e a memória”.
Depois da peste, que metaforicamente haviam sido tanto a Segunda Guerra Mundial, quanto os Campos de Concentração, os de Reeducação (os gulags), os Estados de Sítio, quantos heróis da luta voltaram para suas fraquezas! “Rieux queria fazer como todos à sua volta e crer que a peste poderia chegar e voltar a partir, sem que o coração dos homens mudasse com isso”.
Acontece que peste dos corpos sobrevive na alma! Mas aqueles que têm consciência podem se autovigiar e evitar causar danos ao próximo e, quem sabe, proporcionar um pouco do bem. Afinal, acreditava Rieux: “há nos homens mais coisas a admirar que a desprezar”.
Em momentos como o que vivemos no Brasil e no mundo, o avanço do desconstrutivismo, do niilismo social, da violência e do obscurantismo fascista detectamos facilmente o avanço da “Peste”. Uma peste que destrói os valores os civilizatórios, que num mundo absurdo tenta calar o único contraponto que se lhe pode opor: A SOLIDARIEDADE HUMANA.
Com a solidariedade humana talvez consigamos evitar o contágio e a propagação do mal.