“Mil vezes não! Forçoso é continuar para que o idealismo floresça e a ilusão fecunde”!
Quando adolescente Mário só era bom mesmo em Português; nas demais matérias, reprovações e notas baixas. Mas tudo muda. Mário adolescente apaixonou-se pela música e a ela dedicou quase dez horas diárias de estudo, sem se descuidar da literatura.
“Na Rua Aurora eu nasci, na aurora de minha vida
E numa aurora cresci”.
Foi autodidata em história, história da arte, literatura e, especialmente, em poesia. Dominava a língua francesa tendo lido os principais poetas simbolistas ainda na infância. Como lesse e gravasse com facilidade tudo o que lhe caía às mãos, começou a adquirir a fama de erudito.
“Eu sou trezentos, sou trezentos e cinquenta”, já dizia nosso intelectual múltiplo para os amigos, embora para a família, Mário permanecesse sendo apenas o “Marinho Amalucado”.
Encantara-se com um busto de Cristo esculpido a gesso ainda pelo pouco conhecido Brecheret. Sem dinheiro, negocia uma vaquinha familiar e paga ao escultor para torná-lo em bronze. Quando a obra lhe é entregue, convida a família toda para ver a obra. Um escândalo! O “doido do Mário” tem contra si pais, irmãos, padrinhos e tios, afinal, o “Cristo de trancinhas” de Brecheret, já era demais!
Ao receber o golpe familiar, Mário se tranca no quarto e, alucinadamente, de uma só sentada, compõe a base de a “Paulicéia desvairada”. Estávamos em 1918, e a “Paulicéia” provocou alvoroço, espanto, desvarios, era o toque de alvorada em nosso tardio modernismo!
A obra é reação contra a coisificação do indivíduo, a prepotência do mundo, o esmagamento da subjetividade, a negação do humano.
“Horríveis as cidades! Vaidades e mais vaidades…
Nada de asas! Nada de poesia! Nada de alegria!
Oh! Tumultuários da ausência!
Paulicéia- a grande boca de mil dentes…
Estes homens de São Paulo, todos iguais e desiguais”.
Mas para o poeta, São Paulo também se transforma em uma cidade subjetiva, e é percorrida sob a ótica do Arlecchino, um personagem bufo, farsante e amante cínico, que despreza as conveniências e fórmulas sociais. O poeta-palhaço reinterpreta o instinto de nacionalidade na praça pública, sem o pudor de assumir a experiência da farsa e da irreverência. E como se torna atual no século XXI:
“Quá, quá, quá! Vamos dançar o fox-trot da desesperança,
A rir, a rir dos nossos desiguais!”
Enfim, na “Paulicéia desvairada” “sentimos diante das “cidades tentaculares” uma mistura de atração e repulsa, fascinação pelo movimento poderoso que elas contêm, repulsa pela parte monstruosa e envolvente desse mesmo movimento”, dizia outro modernista, Joseph Conrad, ao referir-se a Londres do princípio do século em “O agente secreto”.
Voltando a Mário, a vida moderna torna patente o desvario do poeta desvairado e este transporta seu desvario para a cidade, que o sufoca em seu abraçar.
“Passa um São Bobo, cantando sob os plátinos,
Um tralalá… guarda cívica. Prisão!
Necessidade a prisão
Para que haja civilização?”
Nosso Mário seguiu profissionalmente com a música e tornou-se, muito jovem, catedrático de História da Música, dando o máximo de aulas que pudesse suportar para sobreviver, no Conservatório de São Paulo.
Em 1922, participou da organização da “Semana de Arte Moderna”, com presença marcante no Teatro Municipal de São Paulo. Logo a seguir foi um dos fundadores da primeira revista modernista “Klaxon”. O ano de 1922 foi-lhe particularmente extasiante.
Foi quando escreveu “O Losango caqui”. Nele, Mário metamorfoseia um militar malandro-tropical e este surge “a caetanear”, como o símbolo do Brasil brasileiro:
“Cabo Machado é cor de jambo.
Pequenino que nem todo brasileiro que se preza.
Cabo Machado é moço bem bonito.
É como si a madrugada andasse na minha frente.
Entreabre a boca encarnada num sorriso perpétuo
Alumia o Sol de oiro de dentes, obturados com um luxo oriental.
Cabo Machado marchando é muito pouco marcial.
Cabo Machado é dançarino, sincopado, marcha vem-cá-mulata.
Cabo Machado traz a cabeça levantada
Olhar dengoso pros lados….
Cabo Machado é bem o representante de uma terra,
Cuja Constituição proíbe guerras de conquista e recomenda o arbitramento.
Só não bulam com ele!
Mais amor e menos confiança!
Cabo Machado toma um jeito de rasteira…
Cabo Machado, bandeira nacional”!
No Brasil de ontem e de hoje, dança-se mesmo na miséria, pois o lúdico sempre se apresenta, devidamente, carnavalizado.
A busca da alegria, do bem-estar que a dança propicia é uma das contrapartidas de uma realidade que por si é desestruturadora. Cabo Machado tem a consciência serena de um “eu” que conhece as dificuldades da vida, mas com a mesma não se desespera, nem se acomoda.
Sobre a vida amorosa de Mário sabe-se muito pouco. São amores fugidios, passageiros, e seu bissexualismo é confessado em cartas a amigos. Ex-aluno marista, congregado mariano por anos, cristão até a morte, Mário reclamava do incômodo “espinho na carne”. Os preconceitos religiosos o fazem confessar: “Há um indivíduo infame, diabólico, que carrego toda a vida comigo… Há um lado hediondo em meu caráter. Sou um vulcão de complicações!” “Há um elemento delicado de tratar, mas que tem uma importância decisória em minha formação: a minha assombrosa, quase absurda e monstruosa sexualidade. Descobri que podia ter relações com uma árvore e com seres humanos de ambos os sexos.”
Escreve “Amar, Verbo intransitivo”, onde a musa do poeta, Fraulein, “faz o coração de o poeta estralar”; teremos o “Girassol da madrugada”, inspirado pela linda filha da mecenas Olívia Guedes Penteado, outro amor passageiro, talvez platônico.
“Tive quatro amores eternos
O primeiro era a moça donzela,
O segundo… eclipse, boi que fala, cataclisma,
O terceiro era rica senhora,
O quarto és tu…
E eu afinal repousei dos meus cuidados…”
Uma das essências do modernismo é o desejo de conhecer a realidade fora do eixo Rio- São Paulo. Este levou o intelectual a realizar viagens “étnicas” a Minas Gerais, ao Amazonas e ao Nordeste. Torna-se, desde então, um estudioso dos regionalismos, do imaginário e das tradições populares.
Revoltava-se, desde então, contra qualquer tentativa de submissão da língua pátria às normas da “Academia”. “Português, que português? Nossa língua é o brasileiro!” “A gramática apareceu depois de organizadas as línguas. Acontece que meu inconsciente não sabe da existência de gramáticas, nem de línguas organizadas”.
Mario jamais se escusou de ser um homem público. Bradava sem medo: “Forçoso é continuar para que o idealismo floresça e a ilusão fecunde, castigar os que aviltam no ‘far niente’ burguês!”
Influenciado pelo marxismo, Mário se volta para o vanguardismo e a arte, para ele, deve servir à comunidade e às massas exploradas. Desse posicionamento surgiriam vários livros, como o “Clã do jabuti”, “Ensaio sobre a música brasileira” e, a obra-prima: a rapsódia “Macunaíma”, em 1928.
“Macunaíma” é um livro estonteante, em que o mágico e o lógico se misturam, onde não existem fronteiras entre o natural e o sobrenatural. Em sua busca do caráter nacional, Mário encontrou um “herói sem nenhum caráter”. Mas essa falta de caráter não é colocada exclusivamente desde um ponto de vista ético, mas como entidade psíquica permanente, que se manifesta em tudo e por tudo, na vida, na História, na natureza, no bem e no mal do brasileiro.
“Ai, que preguiça!”. Como na língua indígena o som “ai que” significa “preguiça”, Macunaíma era duplamente preguiçoso. “No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite.”
Macunaíma surge como um símbolo, que está num tempo que é passado e é presente, que é norte e é sul do Brasil, talvez mesmo, latino-americano.
“Macunaíma ora é corajoso, ora covarde, nada sistematizado em psicologia individual ou étnica. Avança e vence o monstro Capêi e depois foge de uma cabeça decepada, que vem a se tornar sua escrava e da qual foge… Avança para o público na Bolsa de Valores e depois fica com medo, é preso e, novamente, foge. “Me acudam senão eu mato”… não tem coragem para moçar outra icamiaba e parte sofrendo de amor”.
“Macunaíma é uma contradição em si mesmo, o caráter que demonstra num capítulo, desfaz em outro”.
Reforça Mário ainda em carta a Manuel Bandeira: “Macunaíma não é símbolo do brasileiro. Ele vive por si, porém possui um caráter de não ter caráter”.
Coube a esse livro abrir os horizontes para diversos romances regionalistas, dentre eles, sem dúvida, os de Guimarães Rosa, num tempo que poderíamos denominar de neomoderno.
Com a Revolução de 1930, a consciência da função social da literatura e das responsabilidades dos escritores cresceu e tomou um lugar cada vez mais importante na vida e na obra de Mário de Andrade. No entanto, ao se desvincular do grupo “Pau-brasil”, que ajudara a formar, e que formataria o “Movimento Antropofágico”, com fortes vínculos com o Partido Comunista, explicitou Mário de Andrade:
“Não pretendo obrigar ninguém a seguir-me,
Costumo andar sozinho…
Outros infiram o que quiserem,
Pouco me importa”.
Na verdade, a política partidária não o seduzira; deixava-o enojado. Mesmo assim houve um importante período em que ele se entregou de corpo e alma às atividades de homem público. Entre 1934 e 1938, criou e chefiou o Departamento de Cultura de São Paulo. Mas suas contradições com o Estado-Novo o impediram de seguir adiante.
Mudou-se para o Rio e lá foi professor de Estética na Universidade do Distrito Federal. Posteriormente, aceitou o convite de Capanema e trabalhou no Ministério da Educação. Novas desilusões com o getulismo e decide, em 1940, retornar a São Paulo, fundando o Serviço do Patrimônio Histórico Nacional.
Na nossa literatura, talvez Mário seja o escritor que mais de perto possa se margear com a imbatível produção contística de Machado de Assis.
Em 1934 criaria os “Contos de Belazarte”, textos impiedosos que focalizam os dramas da pequena burguesia e do proletariado paulistano. O olhar do autor é ácido, ao mesmo tempo, poético, sensível e tocante sobre o cotidiano, os sentimentos e relações da pequena burguesia e dos socialmente excluídos. Mario mostra nesses contos a outra face da sociedade na modernidade.
Mário confessa a um jornalista que o conto que preferia a todos o que escrevera era “Nízia Figueria, sua criada”. Quando o café entra em decadência no Vale do Paraíba, o sitiante Figueira veio de Pindamonhangaba para São Paulo. Nem bem mudara com filha e criada, morre de um furúnculo mal cuidado. Nízia, a patroa, é branca. Rufina, a negra, a agregada. Aquela chama a esta de você, mas é chamada de mecê. Nízia não sai de casa, produz o que Rufina sai para vender. Rufina aprende com o mundão, Nízia, embota-se. Rufina sofre, pois o conhecer traz sofrimentos e ela engravida. Acaba doando seu “tiziu” quando nasce. Adoece e dai em diante chamará Nízia que a ampara de “fia”, não mais de mecê. “Ai temos o corpo e sociedade ora unidos, ora apartados, no balé brasileiro da intimidade assimétrica”, nos ensina A. Bosi.
Mario ainda escreveria os “Contos novos”, publicados postumamente à sua morte. Talvez sejam os seus escritos mais burilados. Nas nove narrativas, evidencia-se um profundo mergulho na realidade social e psíquica do brasileiro. No conto “Primeiro de Maio”, por exemplo, os protagonistas não têm nome, a tal ponto alcança a alienação fragmentadora do homem na sociedade contemporânea.
Sempre fiel ao espírito moderno, Mário expressou em conferência: “Toda a minha obra é transitória e caduca, eu sei. E quero que seja transitória. Com a inteligência não pequena que Deus me deu e com meus estudos, tenho certeza de que poderia fazer uma obra mais ou menos duradoura. Mas que me importa a eternidade entre os homens da Terra e a celebridade? Mando-as à merda.”
O ensaísta, o narrador e o crítico excepcionais se encontram em: “Aspectos da literatura brasileira” e “O empalhador de passarinhos”, trabalhos de crítica literária publicados em 1943.
“O banquete” consiste de uma série de textos publicados em jornais durante o último ano de sua vida, que no formato de diálogos filosóficos, constituem uma reflexão originalíssima sobre a natureza e função das artes sob o capitalismo monopolista.
Não bastasse toda a atividade, desse intelectual múltiplo, ainda floresceu o folclorista e um crítico de artes plásticas capaz de examinar com primor as obras de Aleijadinho, Lasar Segall e de padre Jesuíno!
“Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
Mas um dia afinal me toparei comigo…
Tenhamos paciência, andorinhas curtas…”
Mário, por ódio ao nazi-fascismo, desde 1942, aproxima-se cada vez mais da esquerda. Deseja uma arte que seja social, igualitária e pragmática, capaz de servir ao aprimoramento do homem.
É desse ano a famosa conferência “O movimento modernista” em que confessa:
“Eis que chego a este paradoxo irrespirável: tendo deformado toda a minha obra pelo anti-individualismo dirigido e voluntarioso, e toda ela não é mais que um hiperindividualismo implacável! E é melancólico chegar assim no crepúsculo, sem contar com a solidariedade de si mesmo. Eu não posso estar satisfeito de mim. O meu passado não é mais meu companheiro. Eu desconfio de meu passado.”
Os dois últimos livros de poemas escritos por Mário foram “Lira paulistana” e “ O carro da miséria”, editados, tal qual “Contos Novos”, apenas após sua morte.
“Eu nem sei se vale a pena
Cantar São Paulo na lida,
Só gente muito iludida,
Limpa o rosto e assopra a avena,
Essa angústia não serena
Muita fome, pouco pão,
Eu só vejo na função miséria, dolo, ferida,
Isso é vida?”
Na primeira fase de Mário o Brasil foi retratado como novo, sensual, convidativo; gradualmente, irá se transmudando em um país duro, marcado por opressões e recoberto pela miséria, contraponto da concentração do capital e do conhecimento nas mãos de uma minoria.
Também o mundo interior, inicialmente tinto pelas cores do entusiasmo, ao final se mostra desbotado pelas experiências frustradas.
Não mais celebrações! O fazer poético de agora é muito distinto daquele de a “Paulicéia desvairada” e de “Losango Caqui”. Presenciamos agora o sofrimento e a solidão do poeta que antes cantava a euforia de sua musa: São Paulo.
O debochado Arlequim dá lugar ao Eu Sombrio, irmanado aos sentimentos dos cidadãos de seu país e do mundo: raiva, fugas, feridas, lutas, miséria.
“Minha viola ferida. Ferida minha viola,
O amor fugiu para leste na borrasca,
Minha viola quebrada, raiva, anseio,
Lutas, vidas, miséria, tudo se passou em São Paulo…
Cidade de espírito cansado,
Que se arrasta em marchas fúnebres….
Muita fome, pouco pão, estudantes sem texto,
Jornalismo de cabresto… ”
“A lira paulista” encerra-se com o poema “Meditação sobre o Tietê”, que Lafetá considera como o testamento público e pessoal de Mário de Andrade.
“O arlequim não pode mais exercitar-se em braçadas vigorosas no Tietê das moções da ambição, como acontecera nos idos tempos da “Pauliceia desvairada”. Às vésperas da morte, a contemplação da água devolve a imagem de uma ronda de sombras.”
Antes da morte que o colhe precocemente em 1945, o líder inconteste do Movimento Modernista deu-se conta de que a vida é mesmice, os sonhos são sempre desfeitos pela realidade, em meio às labutas do cotidiano.
Bibliografia:
1. Lafetá, J.L.. A Dimensão Da Noite, Duas Cidades, 2004.
2. Ayala, M.I. e outros. Múltiplo Mário, EDUFRN, 1997.
3. Andrade, M. Poesias Completas, Círculo do Livro, 1986.
4. Cândido A.. Lembrança de Mário de Andrade. Conselho Estadual de Cultura, 1959.
5. Andrade, M.. Os Melhores Contos e Crônicas. Nova Fronteira, 2015.
6. Martins W.. O Modernismo na Literatura Brasileira. Cultrix, 1977.
7. “Vida de Mário de Andrade foi um vulcão de complicações”, José G. Couto e M.C. Carvalho, Folha de São Paulo, 26.09.93, “100 Anos de Mário de Andrade”.
8. Bosi, A.. Entre a literatura e a história. Editora 34, 2013.