Edmund Wilson publicou-o em 1940: um trabalho genial que, com o passar de quase um século, tenta estabelecer o difícil equilíbrio entre tipos humanos e líderes de massa.
Um verdadeira obra-prima literária, que principia com o historiador francês Michelet (princípio do século XIX), que descobriu Giambatista Vico e sua tese de que a história das sociedades nada tinha de divino, sendo obra dos próprios seres humanos (iluminismo italiano, século XVIII). A narrativa avança até dois séculos depois, quando Lenin desembarca, de num trem, na Estação Finlândia, em Petersburgo, para liderar a Revolução Russa.
Um livro de ideias que, entretanto, até parece ficção pela habilidade e imaginação com que foi escrito e pela força do espírito dos personagens que nele aparecem – Renan, Taine, Babeuf, Saint-Simon, Fourier, Owen, Marx, Engels, Bakunin, Lassalle, Lenin e Trotski – os quais, graças ao poder de síntese e à prosa de Wilson, ficam gravados na memória do leitor.
Uma obra-prima que, por motivos políticos, foi marginalizada por quase meio século, tanto pelo capitalismo quanto pelo socialismo burocrático, apesar de seu alto valor do ponto de vista literário.
A ideia socialista.
A ideia socialista é a ideia de um “paraíso terrestre” a la Dante, uma sociedade sem ricos e sem pobres, onde um estado justo e generoso distribuiria riqueza, cultura, saúde, lazer e trabalho para todos, de acordo com suas necessidades e capacidades, e onde, pelo mesmo motivo, não haveria injustiças nem desigualdades e o ser humano viveria desfrutando do bem da vida, a começar pela liberdade.
Essa utopia que nunca se materializou, mas mobilizou milhões de pessoas ao longo da história e produziu greves, motins e revoluções, violências e repressões indizíveis, além de um punhado de personagens fascinantes que trabalharam até a loucura para incorporá-la à realidade. Entretanto, tanto sacrifício dispendido nessa odisseia irrealizável – em grande medida, graças às lutas que motivou – foi corrigir boa parte das ferozes injustiças da velha sociedade, para que a classe trabalhadora e seus sindicatos renovassem profundamente a vida social, adquirissem direitos que antes lhes eram negados e fossem transformadas de forma radical a economia e as relações humanas.
Lênin X Bernstein. Marx X Bakunin.
O homem que Lenin mais odiava provavelmente era Eduard Bernstein, o líder dos socialdemocratas alemães, a quem acusou de “oportunismo” e “reformismo”, palavras terríveis no jargão marxista. Por que esse ódio? Porque Bernstein, de fato, passou de revolucionário a reformista, graças às concessões que o poderoso movimento operário alemão vinha arrancando da burguesia: melhores salários para trabalhadores, escolas e hospitais, padrões de vida que se confundiam com os da baixa classe média, reconhecimento e proteção jurídica aos sindicatos. Nesse ambiente, era um delírio continuar postulando a revolução total.
Mas a Rússia não era a Alemanha socialdemocrata. Havia ali um Czar e uma polícia que assassinavam e torturavam irrestritamente e campos de de trabalho forçado, onde os revolucionários passavam muitos anos, se sobrevivessem à fome e ao frio. Lenin e a incrível Krupskaia, sua mulher, ficaram detidos lá. Nesse contexto, as teses socialdemocratas de Bernstein não tinham razão de ser e prevaleciam as de Lenin: um partido de militantes revolucionários que exigia “todo o poder” para realizar as reformas que transformariam as raízes da sociedade russa e criariam a mais perfeita sociedade totalitária da história.
Esta é apenas uma das inúmeras rupturas e inimizades que a luta pela ideia socialista gerou. E talvez não seja tão luminosa e romântica como aquela que separou Marx e Bakunin, ou Marx e Lassalle. O anarquista Bakunin era imensamente popular; nos cárceres perdeu os dentes e músculos, mas não as convicções e, viajando por meia Europa, ele espalhou – e nele acreditaram – sua doutrina básica: que a “destruição” era uma ideia fundamentalmente criativa.
Marx e Engels.
Outras páginas do livro se dedicam à extraordinária amizade que uniu Marx e Engels: a descrição que Edmund Wilson oferece da generosidade e dedicação de Engels a Marx e sua família, convencido de que ele mudaria a história humana, é imperecível. Engels não apenas sustentou os Marx por longos anos; chegou a escrever crônicas para o jornal americano que contratara Marx como colaborador. Lendo esse capítulo, é impossível não sentir a mesma simpatia por Engels e reconhecer seu heroísmo discreto, como faz Edmund Wilson em páginas comoventes. Engels odiava ser empresário em Manchester e se sacrificou vários anos nesse ramo para que Marx pudesse escrever o primeiro volume de O Capital. O segundo, com Marx já falecido, foi mais difícil de editar, ainda que o autor houvesse deixado muitas notas e fragmentos. O próprio Engels deu início à tarefa, mas não conseguiu terminá-la, constrangido pela enormidade do empreendimento, e acabou substituído por Karl Kautsky.
No livro de Edmund Wilson, todos esses episódios têm cor, graça e a convicção de que por trás daqueles acontecimentos minúsculos e obscuros foram dados passos decisivos para a transformação da história humana. Não foi exatamente assim, mas, no livro, foi. E um de seus grandes méritos é nos convencer disso.
Bakunin e Lassalle. Lênin e Trotski.
Ao mesmo tempo que criavam tipos extraordinários e forças da natureza, como o anarquista Bakunin e o socialista Lassalle, as lutas sociais iam renovando a Europa. Os sindicatos e partidos políticos dos trabalhadores transformavam a sociedade, deixando-a menos injusta. Exceto na Rússia, onde o Czar nunca fizera a menor concessão e continuou com a ferocidade de outrora, a perseguição aos adversários. Assim ele cavou sua própria sepultura e embarcou seu país e o mundo na mais ruinosa das aventuras.
Tudo isso acontece em Rumo à Estação Finlândia, antes que Stalin ascenda ao poder e a revolução mostre sua face mais horrível: a liquidação dos dissidentes, reais ou inventados. Em suas últimas páginas, Lenin e Trotski ainda são amigos e se respeitam – e este último acaba de publicar um ensaio vibrante: A Revolução de 1905.
Segundo Wilson, Trotski não tinha a convicção fanática de Lenin, nem estava disposto a fazer os mais trágicos sacrifícios para impulsionar a revolução; era mais culto e melhor escritor. Mas as revoluções não são feitas por homens de cultura, mas sim por revolucionários, e Lenin o fez de corpo e alma, com a ajuda de Krupskaya, exigindo que os militantes não se esquecessem nem por um segundo da ideia da revolução e estivessem dispostos a fazer todos os sacrifícios.
O livro relata as teorias, as rivalidades e inimizades, as vaidades em jogo, as intrigas e futilidades que regulavam a vida desses grandes homens. E, ao mesmo tempo, narra como, trabalhando pela justiça, eles estavam coagulando futuras injustiças.
Esse difícil equilíbrio entre tipos humanos e líderes de massa Edmund Wilson o resolve de maneira soberba, destacando, por exemplo, no caso de Marx, a vida miserável que ele e sua família levavam morando em dois quartinhos do Soho londrino e a fantástica transformação social daquele que tinha a convicção absoluta de ser um porta-estandarte.
Um estudo sobre os homens que fizeram a História.
Como disse Gore Vidal, o gênio especial de Wilson estava em estabelecer mais conexões entre vários campos do conhecimento do que qualquer outro crítico do seu tempo. Somente um homem com a estatura intelectual de Wilson seria capaz de empreender a construção de uma obra da abrangência de Rumo à Estação Finlândia, um livro impossível de ser enquadrado em uma só categoria, capaz de agradar tanto a um especialista quanto a um não-iniciado.
Enquanto amplia e problematiza o estudo da revolução soviética, Wilson desenvolve, como pano de fundo, uma trama em que personagens históricas, suas vidas, suas ideias e suas práticas compõem um todo complexo e contraditório, dinâmico e envolvente.
Estudo crítico e histórico das teorias revolucionárias europeias que estabeleceram as bases do socialismo bolchevique, este é um livro impossível de ser enquadrado em uma só categoria, capaz de agradar tanto a um especialista quanto a um não-iniciado. Desde a Revolução Francesa até a Russa, em 1917, Wilson percorre as batalhas intelectuais de um grupo de homens – conspiradores e filósofos, utopistas e niilistas, socialistas e anarquistas -, batalhas que ajudaram a moldar a história do século XX.