Pensar criticamente significa iluminar a trilha do pensamento em meio aos preconceitos, às opiniões não examinadas, e às crenças com seus dogmas.
Nem dogmático nem cético, o pensamento crítico corresponde à modéstia destruidora que questiona as possibilidades e o limites do pensar. E isto Kant o fazia sem poder vivenciar pessoalmente a liberdade, sob a Prússia reacionária de Frederico II!
Se alguém perguntar-me sobre o que considero como características fundamentais do pensamento crítico eu elencaria, antes de tudo, a reflexão sobre o próprio pensar, depois o pensamento modesto e, finalmente, a popularização do pensar filosófico, por si só questionador.
Dado que o ser humano como tal só existe na comunicação e na consciência dos outros, devemos compartir para aprender, escolhendo nossas companhias, já dizia Arendt. E se essa escolha significa escolher determinados pensadores ou certos companheiros de jornada, com o objetivo da busca de um caminho próprio, que será sempre unicamente nosso, aberto para as questões do presente! De modo que os pensadores escolhidos se tornem contemporâneos e não o contrário.
O Passado possui suas luzes e trevas, mas somente o Presente é vida e é nele que devemos aspirar viver a liberdade! E viver a liberdade será defrontar-se permanentemente com o “eterno fascismo¸ como nos ensina H. Eco.
Ao pensarmos criticamente, a verdade deixa de ser una e estática ou absoluta, assim como a via de acesso a ela. Trata-se de aprender a lidar com o Passado, aliando o querer conservar ao querer destruir de W. Benjamin, para quem buscar significados é sempre um reexaminar sem fim e a cada resultado obtido segue-se a dissolução deste, e, após isto, um reexame, num “eterno retorno” de Nietsche.
Se os conhecimentos dogmáticos se estabelecem, isso ocorre porque os “insigts” da razão são tratados como resultados do conhecer e que, uma vez consolidados, ganham o status de “resultados científicos” e tornam-se inquestionáveis. Tendo o pensamento dogmático como alvo, Kant diferencia razão do intelecto, e entre estes a atividade do raciocínio daquela que é apenas senso comum; as atividades do pensar passam ao lado da atividade do conhecer.
Logo, o senso comum, o “bom senso” não se confunde com o pensar. E a ciência, em si, é um prolongamento extremamente refinado do bom senso. Pensar, raciocinar, usar a razão é procurar aprender os significados. A parcela do conhecimento que nasce do pensar é o significado, permanecendo a razão como condição básica para o intelecto.
A irreflexão e a perda das “asas da liberdade”.
Sócrates é o descobridor da “consciência em si”, e para ele “seria melhor que uma multidão discordasse de mim do que eu, sendo um, discordasse de mim mesmo e entrasse em contradição comigo mesmo”.
Aquele que não pensa não se constitui como personalidade, apenas chega a ser uma “personna”, um possuidor de máscaras, um protótipo da consciência fascista. O não- pensante não precisar se ocupar com a harmonia de um “eu interior”, ele não precisa prestar contas do que faz ou do que diz, e nem se importará em cometer um crime, do qual, aliás, se esquecerá no momento seguinte.
Kant, por seu lado, ressaltou que “o diálogo consigo mesmo” é a forma de manifestação da pluralidade humana e contradizer-se significa tornar inimigos os dois parceiros do diálogo interior. “O eu é uma espécie de amigo”. Como nos recorda Arendt, Catão, o romano, dizia com sabedoria: “nunca um homem está mais ativo que quando nada faz, nunca está menos só do que quando está consigo mesmo. Isso o faz refletir”.
A irreflexão ocorre por parte daqueles que se ocupam das coisas do mundo e nunca param para pensar. Ela pode ser encontrada até mesmo em pessoas eruditas, em cientistas e em pessoas inteligentes.
No III Reich Alemão, por exemplo, havia intelectuais e eles eram assassinos altamente cultos, “embora nenhum deles tenha composto um poema a ser lembrado, uma música digna ou um quadro que alguém penduraria na parede” (Jaspers).
Isso porque nenhum talento pode suportar a perda da integridade que experimentamos quando perdemos a capacidade comum de pensar, de lembrar e nos emaranhamos no navegar do acovardamento.
O não pensar se torna um problema social em momentos de crise, quando os antigos padrões e códigos de conduta e ética caem por terra. É quando aqueles que não pensam se deixam levar pelas novas regras que terminam sendo ditadas por bandidos movidos por ideologias, ideologias que espelham que mundo deveriam ser segundo eles próprios, um mundo criminoso, fascista.
Arendt admite que ninguém pode viver sem preconceitos, pois não é possível julgar novamente e continuamente todos os acontecimentos. Isto exigiria uma bagagem e um estado de alerta sobre humanos. Mas “viver sem preconceitos” não vale para a política, que se baseia na formação de opiniões, e não é válido para os momentos de crise, quando é necessário discernir-se o certo do errado. Por isso mesmo “aqueles que pensam, precisam aparecer para julgar os acontecimentos políticos nos momentos de crise”.
A História demonstrou ser prenhe de pessoas que, mesmo sob condições do terror mais extremo, são capazes de resistir, julgando o que é certo e o que é errado, e agirem de acordo com suas consciências.
O problema da irreflexão é que aqueles, que se conduzem por códigos e regras, são os primeiros a aderir e a obedecer.
O nazismo, os autoritarismos e as tiranias, que sempre buscam se implantar na humanidade, substituem o não matarás pelo matarás.
Aquele que não pensa possui um eu que não fundou raízes, é um ninguém. São seres humanos que se recusam a serem pessoas. No entender de Jaspers, ser ninguém é pior que ser mau; esse ser, o ninguém, se revela inadequado para o relacionamento com os outros, porque os bons e os maus são, no mínimo, pessoas. É isto que faz da banalidade do mal o pior dos males: espalha-se rapidamente sem necessidade de qualquer ideologia.
O ser livre.
A ideia de que nascemos para a liberdade sugere que de algum modo estamos condenados a sermos livres e esta é uma espantosa responsabilidade da qual se tenta escapar com a ajuda de diversas doutrinas, como o fatalismo, o niilismo ou o fascismo.
Se a pedra de toque de um ato livre é sempre a nossa consciência de que poderíamos ter deixado de fazer aquilo que de fato fizemos, o verdadeiro pensar não aceita as condições sob as quais a vida dos homens é dada.
Onde quer que os homens se encontrem, todos nós somos movidos pelo desejo de sermos vistos, ouvidos, comentados, aprovados e respeitados pelas pessoas que nos rodeiam. A virtude por esta paixão, que se chama emulação, o desejo de superar os outros, entretanto, quando se torna um vício transforma-se em ambição o que leva o “homem da polis” a aspirar ao poder por meio da distinção. Aí encontramos os principais vícios e virtudes psicológicas do homem político.
No entanto, quando a vontade de poder se aparta do desejo de distinção, tal como é o caso do tirano ou do espírito que se corrompe no processo, não se trata mais de um vício, mas uma condição que tende a destruir toda a vida política.
E agora o que importa, o que está em questão, já é o valor da própria vida e a possibilidade de perda das asas com que vivenciamos a liberdade, caso abdiquemos da responsabilidade do pensamento crítico!
19 respostas
Sinto que me identifico com todas as formas de pensar e não consigo definir aquela em que melhor me enquadraria.
Busco um ‘ponto de café ‘, onde pudesse lavar meu rosto e minhas mãos, fazer xixi…voltar ao mundo que circula ao meu redor.
Costumo ver por lentes deformadas, alguma luz que me orienta.
Está bem escrito, gostaria usa para uma monografia, preciso saber como citar.
Bom dia,
Esse texto tem grande significado para todos que se interessam por um livre pensar e fazer. Tais críticas não são fáceis de serem praticadas, mas como somos seres em fazimento, havemos de assumí-las. Caso sejamos abertos cf. Nietzsch ao “eterno retorno”. Informo que se não haver discordância, gostaria de iniciar as disciplinas que ministro em saulas de aulas do 3º Grau, com este, texto seu.
Desejo que tenhas encontros agradáveis e festivos de fins de ano.
Edma José Reis
Absolutamente à tua disposição.
Parabéns, ótimo texto.
O pensar, a distinção, o apartar, são importantes, tal qual plano cartesiano, ampliar os dados para transformar em informações, mas, creio eu, até o momento, que não há nada que faça-nos sentir completude que superar a situação mesmo. É pensar criticamente, apartar, distinguir e em belo aplicar, saciar-se. Fantástico!
*Quero dizer ” superar a si mesmo”
Ao lê textos dessa magnitude, me sinto, as vezes, otimista com o ser humano, mas ao arrastar a tela, volto para a realidade. Parece palestra sobre educação, todo mundo que participa acha lindo e maravilhoso, mas é só terminar o coffee break, que ninguém liga mais para àquilo.
É só um desabafo.
Miguel Mariano, um filósofo tosco
da vida.
Ao lê textos dessa magnitude, me sinto, as vezes, otimista com o ser humano, mas ao arrastar a tela, volto para a realidade. Parece palestra sobre educação, todo mundo que participa acha lindo e maravilhoso, mas é só terminar o coffee break, que ninguém liga mais para àquilo.
De um filósofo tosco
da vida.
A ideia de que nascemos para ser livres é bastante compartilhada por muitos autores. Porém, caro amigo Carlos Russo, não me deparei ainda com uma justificativa logico-cientifica para esse pensamento. Você poderia fazer o favor de apresentála.?
Antecipadamente grato
Mtnos Calil
Calil, não é possível qq comprovação científica, mas se observarmos a Natureza, todos os animais nascem para a liberdade
Excelente, sobretudo aos tempos atuais onde o discurso de ódio parece dominar o pensamento crítico, dada a realidade atual. Esse conteúdo nos fazem ouvir como uma doce flauta em meio aos ruídos nefastos que nós bombardeiam o tempo todo.
Ola!
Chegando por aqui! Muito bom o texto! Profundo e direto ao mesmo tempo. Eu até formei um juízo sobre, mas, prefiro perguntar sua visão quanto a tiranos da outra extremidade: o comunismo.
Como você vê o padrão psicológico dos comunistas?
Os tiranos de todas as cepas são a barbarie encarnada
Sobre nascer para ser livre. Comentado acima:
Na afirmação que “todos nascem para serem livres” se entende que esses que nascem não possuem liberdade ao nascer. Sendo essa liberdade o objetivo das suas vidas. Liberdade pode ser buscada? Se pode ir de encontro a liberdade? Porque se buscar a liberdade? Enquanto se busca a liberdade, não se reduz a liberdade daquele que a está a buscar? A liberdade tem existência objetiva para ser um alvo de busca? Se eu não tenho liberdade, tudo que eu definir como liberdade será resultado de um juízo não livre, e, por isso, não será a liberdade.
Eu concordo plenamente que a liberdade seja o objetivo final de todo ser humano, mas liberdade é um conceito problemático. Não acho que seja algo que possa ser submetido ao pensamento lógico e nem mensurado pela ciência.
A liberdade não pode ser mensurada pela ciência, mas pode ser mensurada pela consciência. ” O seu direito (liberdade) termina quando começa a liberdade/ direito do outro…
Escrito excelente! Necessário para os tempos sombrios que vivemos.
E que nessa era da tecnologia flex, de pólvora, ocorre tudo muito rápido. E existem pessoas q fazem uso da bomba de efeito retardado e só consegue ter noção de causa e efeito quando já passou a oportunidade de se manifestar. E isso vale pra tudo no cotidiano.
O pensamento crítico, tendo Kant como referência é essencial. Contudo, acredito que o exercício de pensar fenomenologicamente, com base na abordagem de Husserl, é o que constitui o verdadeiro pensar profundo e libertador. Para mim, essa forma de reflexão, especialmente no contexto da cultura ocidental, serve como uma base poderosa para a superação de conflitos e pre -julgamentos.