A democracia e a liberdade contemporâneas: Jesus Cristo, H. Arendt e T. Jasper.

Nas sociedades democráticas contemporâneas, a liberdade foi perdida em meio a um sistema que deixou de representar os anseios dos cidadãos, tornando a convivência humana fundada na igualdade política impossível. Como decorrência, alijado das decisões políticas e sem espaços para o exercício da liberdade, a população tornou-se desinteressada da coisa pública e seu único Espaço Público reduziu-se às redes sociais. A urna eleitoral eletrônica e o “Ser Cidadão” foi transformado em mero eleitor digital.

Até mesmo o espaço público-privado do dia a dia, do trabalho, da escola, da vida comunitária é tão somente formalmente público, dado que dele não mais fazem parte os discursos, as ações comuns, o contato e a proximidade entre cidadãos, enfim, aboliu-se em todos eles a fraternidade. Pelo contrário, as ruas, as fábricas, os shoppings, são espaços consagrados ao isolamento: um espaço que os indivíduos ocupam solitariamente, consomem, mas não o compartilham entre si!

As pessoas, no contexto em que vivemos, abdicam da identidade própria e como não são integradas em nenhuma organização fundada no interesse comum, quer seja em partidos políticos, esferas de governança, organizações profissionais ou sindicatos, transformam-se em “massa”.

“O fato é que uma sociedade de consumo não pode absolutamente saber como cuidar de um mundo e das coisas que não pertencem de modo exclusivo ao espaço das aparências mundanas, visto que sua atitude central ante todos os objetos, a atitude do consumo, condena à ruína tudo o que toca. ” (Arendt)

A ruína do sistema partidário como representante de interesses antagônicos se deu quando as diferenças entre as antigas classes sociais desapareceram no surgimento das “massas”.

Já não é necessário manietar ou fazer calar a massa, pois ela já é destituída de referenciais políticos ou de classe, ocupada exclusivamente com o consumo e com a sobrevivência individual. Neutras e indiferentes, “as massas” surgem numa sociedade de classes absolutamente hierarquizada, que permite a ascensão apenas para pequena minoria privilegiada.

Nas democracias contemporâneas, em que o homem comum é alijado da capacidade do pensar, a existência é também transformada em “objeto” e em consumo.

A prática permanente da violência, dentro da própria “massa” e do poder público contra “a massa”, tornou-se corriqueira. O Brasil é um dos mais claros exemplos, pois a quantidade de assassinatos e da violência praticada nos assemelham a sociedades sob guerra civil aberta. O crime, o tráfico, a impunidade, tanto para os agentes públicos quanto para aqueles que habitam o andar superior da pirâmide social, passaram a constituir um conjunto estruturado de fatores que permitem que os governos, os políticos e os lobistas permaneçam com as mãos livres para os desmandos e para a corrupção.

Esses movimentos todos convergem. Enquanto os indivíduos mantêm-se em hostilidade, são hostilizados e abandonam o espaço público, surgem, então, os muros, as grades, cercas, o negócio bilionário da segurança pessoal, os shoppings centers fechados e exclusivistas, os guetos do bem-estar e do consumo, de onde são expulsos os destinos dos milhões de excluídos.

A banalidade do mal numa sociedade como a nossa não se reduz a matar, a torturar, a manter o terceiro maior volume de prisioneiros em masmorras medievais, mas, principalmente, traduz-se na exclusão social, que por sua vez, reforça a violência e enceta o isolamento.

A exclusão é a principal criadora das “massas” que não pensam e só votam.

Na visão de Theodor Jaspers, a existência humana é entendida como intimamente vinculada à historicidade e o existir é um transcender na liberdade. Para ele, o problema central nas sociedades contemporâneas transforma-se “em como pensar a existência sem torná-la objeto”, pois “a verdade não é entendida como característica de nenhum enunciado particular: é antes uma espécie de ambiente que envolve todo o conhecimento. ” Nessa justa medida, a liberdade foi espoliada e a própria política ganhou um novo significado: a administração pública dos interesses econômicos privados!

Jesus Cristo.

Jesus teve uma significação transcendental no enfoque da liberdade. Ele suspeitava das aparências de se querer fazer bondade e boas obras sob orbe da política, no que ele denominava de “hipocrisia de fariseus”. “Não saiba a mão esquerda o que faz a direita”.  A própria essência da bondade é esconder-se e não aparecer, pois caso contrário, o ato se revela como hipocrisia.

Para o existencialista Jaspers, “sem refletir sobre si mesmo, não há bondade humana possível, e refletindo sobre si mesmo, não há bondade inocente. ”

O Nazareno, ao contrário de Sócrates que era um homem público da Ágora ateniense, atuava em meio à obscuridade, num espaço que não era nem público, nem privado. Jesus tinha uma total falta de interesse em estabilizar instituições da “polis”, frente ao rigor das leis do Deus de Moisés, que regulavam cada passo dos homens, “ele propunha um adorável descuidar-se” (Arendt).

A fé que remove montanhas- é a liberdade em ação!

Em nenhum momento Cristo ameaça com punições ou prêmios após a morte; as boas novas eram sempre “redentoras dos pecadores”. Portanto, Jesus foi o descobridor do perdão nas relações humanas, uma maneira de desfazer o que já tinha sido feito. O amor ao próximo estava no enunciado: “amar ao próximo como a ti mesmo”.  E o próximo que se ama, afirma-se não pelo amor ou pela bondade, mas pela compaixão, que é o ato de sofrer junto, o compartir de outra humanidade, da humanidade de seus Apóstolos, daqueles que lhe são próximos.

Dessa forma, Cristo, no sentido totalmente contrário ao da Lei, não queria obediência, mas amizade e amor, e o cristianismo dos primeiros tempos, semiclandestino, era apolítico, mas revoltava-se contra as injustiças sociais!

A desobediência somente foi transformada em pecado mortal séculos após, quando a obediência se erigiu na base da ética cristã, após o declínio do Império Romano, quando a Igreja Católica passou a ser sua herdeira espiritual: autoridade, religião e tradição. Foi Santo Agostinho, no século IV, quem articulou conceitualmente a doutrina cristã e a filosofia grega à experiência romana, o que permitiu à Igreja atuar na esfera política, ocultando, entretanto, essa atuação da doutrina original.

À Igreja foi dada a Autoridade, aos Príncipes, o Poder.

E para evitar uma completa perversão dos evangelhos, Agostinho criou a “Civitas Dei”, onde os homens, logicamente após a morte, pudessem viver em comunidade, em comunhão, sob a lei divina. Uma “Civita Dei” que, de certa forma espelha a Nova Jerusalém do Apocalipsis de João de Patmos.

Desse modo, enquanto a Igreja prestava legitimidade ao poder temporal, esse protegia a “liberdade” da Igreja, que longe de ficar distante da política, tinha o dom de excluir aqueles que lhe eram pouco fiéis. Ela legitimava o poder secular, apelando para “um amor ao próximo”, que ao metamorfosear-se transformara-se em “ finalidade da política”.

O espaço garantido aos fiéis passou por uma profunda alteração, substitutivo da cidadania antiga e que permaneceu até a era moderna: transmutou-se em público/eclesiástico.

Os homens perderam a praça pública e foram empurrados para a obscuridade das Igrejas e dos Templos, sob o pavor inculcado pelo mito do Inferno Platônico, também “traduzido” para o cristianismo pelo mesmo Agostinho, seguramente inspirado no “Apokalipisis” de João de Patmos, escrito entre 70/100 anos após a morte de Cristo.

Assim, o cristianismo triunfante pós-agostiniano, criando um sistema de ações/ punições e recompensas futuras, renegou a antiga convicção filosófica de que “a recompensa de uma boa ação seria ela mesma”. A maioria dos homens passou a ser conduzida através do medo pela morte e, de um pavor ainda maior pelo futuro após ela.

“Se o lugar da liberdade é o mundo, o lugar do amor à liberdade é o coração humano; um lugar sombrio, mas de resistência. ” (Arendt)

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