A tortura e assassinato do garoto Pablo Miguez.

As águas geladas e barrentas do rio de la Prata foram transformadas, pela ditadura militar que governou a Argentina (1976/1983), em depósito clandestino de presos que ali eram jogados, muitos deles ainda vivos, para morrerem por afogamento e seus corpos desaparecerem.

Um dos mais jovens era uma criança de 14 anos, um jovem magro de cabelos morenos cobrindo as orelhas, chamado Pablo Miguez.

Foi preso com a mãe, ela membro do grupo guerrilheiro ERP, por um grupo armado do Exército que invadiu sua casa no bairro de Avellaneda, em maio de 1977.

O menino Pablo foi torturado com choques elétricos diante da mãe no centro clandestino “El Vesubio” e depois levado para a Escola de Mecânica da Armada, a notória ESMA, centro de torturas e assassinatos, onde sobreviveram apenas 100 dos 4 mil presos que passaram por lá — entre eles não estava Pablo.

A jornalista Lila Pastoriza, que saiu viva da ESMA, ficou um mês e meio ao lado de Pablo, que não era interrogado por ninguém. “Veja a que nos dedicamos agora”, comentou um carcereiro da ESMA, zombando da pouca idade do preso.

“Um dia, um dos guardas o pegou pela mão e nunca mais soube dele”, contou a jornalista no tribunal que julgou alguns de seus assassinos.

A imagem de Pablo ficou flutuando para sempre na consciência nacional e nas águas do Prata, onde ele parece caminhar na impactante estátua em aço polido da artista plástica Cláudia Fontes, que esculpiu no Parque de La Memória a figura de um garoto, com as mãos para trás, olhando o horizonte sem fim do grande rio onde se afogaram tantas vidas e esperanças. A obra está colocada de costa para a praia, e produz um forte efeito emocional em quem a vê. A dois quilômetros de distância está a ESMA, onde um dia Pablo viveu os últimos momentos de sua curta vida.

Uma coisa rápida, como pedia Kissinger, Secretário de Estado dos U.S.A. aos generais golpistas.

Flutuando para sempre na consciência nacional e nas águas do Prata.

Pablo começou a morrer quando recebeu uma injeção anestésica que o deixou grogue, sonolento. Homens da Marinha, sem uniforme, descaracterizados com tênis, jeans e camiseta, o levaram para o Aeroparque, aeroporto doméstico a apenas 4 km da ESMA, e o embarcaram num Skyvan, um bimotor turboélice irlandês conhecido como ‘caixa de sapatos voadora’. Transportava 19 passageiros, era curto, bojudo e muito apreciado pela rampa traseira que facilitava a descarga de mercadoria.

A ditadura argentina achara uma boa finalidade nesse avião para descartar suas ‘mercadorias’ humanas: decolava com sua carga de presos do Aeroparque até a altitude de 6 mil metros, a 300 km por hora, e de lá jogava sua carga no rio de la Plata.

Antes de virar estátua, Pablo desapareceu assim, da mesma forma que outras 4.400 pessoas despejadas por ordem direta do almirante Emílio Massera, o nome mais sanguinário da junta militar.

A entrevista que não foi.

Vários corpos teimaram em reaparecer, a partir de maio de 1976, nas praias argentinas e uruguaias do Prata.

Roberto León Dios, um dos forenses que realizou várias autópsias, morreu misteriosamente alguns meses depois.

Outras pessoas começaram a falar do surgimento dos corpos, como o jornalista e autor Rodolfo Walsh, que em 24 de março de 1977, no aniversário do primeiro ano do governo militar, escreveu uma “Carta aberta de um escritor à Junta Militar” no qual denunciou esses fatos. No dia seguinte, Walsh foi atingido por diversas balas em pleno centro de Buenos Aires. Seu corpo desapareceu.

Os restos com marcas de torturas localizados 300 km ao sul de Buenos Aires foram rapidamente sepultados como NN (no nombrados) no cemitério de General Lavalle, uma localidade rural às margens do rio, com pouco mais de 3 mil habitantes.

Autópsias posteriores identificaram entre eles três fundadoras do grupo das Mães da Plaza de Mayo — Esther Ballestrino, Maria Eugenia Ponce de Blanco e Azuzena Villaflor.

Os corpos que ressurgiam nas praias distante do cabo Polônio — já na costa uruguaia do Atlântico, 260 km acima de Montevidéu — de certa forma voltavam para casa. Eram uruguaios exilados na Argentina, sequestrados pela Condor, torturados na Automotores Orletti do agente Furci e do coronel Cordero e arrojados das alturas no Prata.

Deveriam desaparecer, mas ressurgiam teimosamente nas manchetes dos jornais, todos censurados, que se limitavam a informar sobre os achados macabros, sem avançar nos motivos e identidade dos assassinos. Apesar disso, todos sabiam ou imaginavam do que se tratava.

Os detalhes só foram conhecidos uma década depois, em 1995, quando o capitão de corveta Adolfo Scilingo contou ao jornalista Horácio Verbitsky a verdade sobre os vuelos de la muerte, que ele coordenou como integrante da ESMA. O depoimento virou um livro, El Vuelo, e o sucesso garantiu ao capitão um convite da TV estatal da Espanha para uma entrevista bombástica.

Vuelos de la muerte.

Quando desembarcou em Madrid, em outubro de 1997, em vez do festejado apresentador da TVE Carlos Herrera, o capitão da ESMA foi desviado do estúdio para ser entrevistado num tribunal por outro espanhol: o juiz Baltazar Garzón, que ganharia renome mundial um ano mais tarde ao determinar a prisão do general Pinochet pelos crimes da Condor. Scilingo confirmou ao juiz os pormenores dos voos assassinos e nunca mais retornou à Argentina. Pelos crimes de lesa humanidade, a morte de 30 pessoas e a detenção ilegal e torturas em outras 256, o capitão foi condenado pela Suprema Corte espanhola a 1.084 anos de prisão.

Obs.: Ainda hoje são investigados os crimes de tortura, assassinato e ocultação de cadáveres a partir de voos da morte que tenham partido do Campo de Maio, propriedade do Exército Argentino.

Ref. Cunha, L.C. Operação Condor: o Sequestro dos Uruguaios (ed. LP&M, 2008)

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