A religiosidade na antiga civilização grega para ser compreendida necessita de que esqueçamos conceitos como “fé” e “crença” do modo como são entendidos nos nossos dias. A religião grega não tinha um livro, uma bíblia, ou uma Igreja. O que existia era o sacerdócio, apanágio de algumas famílias antigas e que gradualmente se transformaram em magistraturas, que como outras funções cívicas, possuíam delegados eleitos pelo voto em assembleias realizadas na Ágora.
Deste modo, jamais existiu a figura do corpo sacerdotal permanente, do profissional, do mesmo modo como não havia uma teologia, nem dogmas e muito menos credos. O “crer” do grego é inseparável do conjunto das relações sociais e das práticas sociais. Ou seja, entre o sagrado e o profano não existia uma oposição radical ou um corte rígido.
J. P. Vernant coloca a questão dessa crença dentro dos três elementos que constituem o sistema religioso:
Os rituais.
Crer é cumprir certo número comum de atividades durante o dia ou durante o ano, com festas que são fixadas pelo calendário, que funcionam da mesma maneira como praticar os atos da vida cotidiana.
Tudo isto não se faz de qualquer forma, mas existem regras que englobam esses comportamentos e que também possuem um caráter religioso. Por exemplo, o sacrifício de animais é a um só tempo uma cerimônia religiosa, com todo o seu ritual preconizado pelos deuses para que os homens se alimentem e os homenageiem e, ao mesmo tempo, uma cerimônia social que reúne os cidadãos e que aumenta a “phylia”, a amizade, entre os mesmos.
As imagens.
As primeiras figurações dos deuses, suas imagens, seus ídolos e ícones são pessoais ou pertencem aos “guenos”, às famílias. Com o passar do tempo, a cidade como que “sequestra” esses ídolos “familiares” e os transforma em públicos. E cada cidade edificará o seu ou os seus deuses propiciatórios.
Os mitos.
Como a crença no sagrado não se esteia em livros, ela é contada por meio de narrativas, que somente adquirem uma forma canônica no século VI a.C., a partir de Homero, Hesíodo e poetas como Píndaro. As crianças e os jovens, no processo que os gregos denominavam “paideia”, iriam estudar esses versos narrativos e decorá-los.
Cremos que não havia um único grego que pensasse que as coisas realmente haviam acontecido como os poetas as descreveram, mas isso não quer de forma alguma dizer que eles as considerassem falsas.
Acontece que a crença religiosa dos gregos não era dogmática e o politeísmo era flexível o suficiente para adequar-se a versões múltiplas. A religião grega pode claramente ser definida como “uma religião política”. E isso significa que o religioso, por ser sociopolítico, é muito mais uma forma de vida social e coletiva do que, primeiramente, “uma forma de experiência pessoal e de relação pessoal com a divindade”.
Para os gregos, o amor que vai do homem aos deuses é um amor exclusivamente utilitarista, pois amamos o que necessitamos ou o que nos privaram, sem nenhum tipo de contrapartida esperada dos deuses para com os homens.
Os deuses que se situam no mundo, o mesmo que nós habitamos, eles não o criaram, mas foram criados pelo mesmo processo cosmogônico que criou o universo e os homens.
Os deuses somente são superiores aos homens por sua imortalidade, por não envelhecerem e com isso deixarem de ser belos e saudáveis e, finalmente, por seu poder em relação aos “efêmeros”.
Por outro lado, os gregos jamais fechavam a sua religião a novas divindades. Estavam sempre dispostos a aceitarem, desde que disso tirem proveito, os deuses estrangeiros. Isto porque eles não possuem nenhuma visão de que sua crença represente uma verdade absoluta, que precise conquistar novos povos para “a verdade”.
O que existe é um relativismo intrínseco, utilitário e complacente: os gregos estão convencidos de que para eles as “coisas são assim”, e entendem perfeitamente que para outros povos possam ser diferentes.
A harmonização do consciente e do inconsciente- O culto a Dionísio (Bacco).
Dionísio é uma dessas divindades de origem asiática, que foi astuta e resolutamente apropriada pelos gregos e terminou por incorporar-se à sua “religiosidade cívica”. A abrangência de seu culto progride ao mesmo tempo em que a aristocracia é derrotada pelas tiranias e essas, substituídas pela democracia.
Dionísio torna-se o deus que aproximava o homem da natureza e liberava seus instintos. Ele é o culto do “deus máscara” e existe aqui uma ruptura radical com os deuses mais antigos, quer os de Homero, quer os de Hesíodo ou Píndaro.
Em seu culto, contrariamente aos deuses olímpicos, Dionísio não se contenta com momentos de piedade que para com ele tenham os homens, a este deus não bastam orações e sacrifícios, pois na sua relação com os homens não há o “dar e receber”, não há moeda de troca, que era a tônica de toda a religiosidade vista até agora.
Dionísio é o deus que somente se satisfaz com o total arrebatamento, sua satisfação somente se esgota no abranger de todo o ser humano; ele permite o êxtase, a ultrapassagem das medidas, sendo capaz de conduzir os mortais desde o mais profundo horror ao mais alto patamar da realização da alma.
O deus-máscara, não incidentalmente, metamorfoseia-se em um humano e age como tal, de uma maneira diferente que todos os deuses homéricos; Dionísio assume-se como homem divinizado, ou deus humanizado. Por isto Dionísio é o deus que possui a habilidade de arrastar o ser humano à felicidade e ao autoconhecimento supremo, assim como à loucura e à destruição.
Portanto, seu culto leva o homem a assumir-se enquanto instinto, enquanto natureza viva.
A tendência a ver Dionísio somente como o deus inventor do vinho- esta graça dada aos homens-, não engloba seus atributos, sendo apenas parcela dos mesmos, o vinho, a seiva íntima da própria natureza.
Nietzsche assinala: “sob a magia do dionísico torna a selar-se não somente o laço de pessoa a pessoa, mas também a natureza alheada, inamistosa ou subjugada volta a celebrar a festa de reconciliação com seu filho perdido, o homem”.
O culto a Dionísio e as bacanais foram se estendendo por toda a Grécia, não sem gerar reações dos aristocratas, dos reis e governantes, que resistiam às orgias populares.
“As Bacantes”, uma das derradeiras tragédias de Eurípedes, retrata a resistência da aristocracia ao novo – representada pelo rei Penteu-, assim como sua submissão e esquartejamento no culto do deus-máscara. Não por acaso as bacantes eram mulheres, matronas e donzelas, a se libertarem momentaneamente de um mundo patriarcal pelo “entusiasmo” propiciado pelo vinho, em rituais de danças em contato íntimo e direto com a natureza.
O culto a Dionísio rompe com o poder aristocrático e é agente transformador social, incorporando mulheres, servos e clientes.
Dionísio e Apolo.
Se o dionisismo foi um componente importante da própria democracia no âmbito cívico-religioso, é justo acentuarmos o correto contraponto que a “sophrosine” ou o equilíbrio grego o submetia. Pois enquanto muitos povos tiveram apenas e tão somente seus libertadores do espírito e dos instintos, mesmo dos mais violentos e libertinos, que possibilitavam a mistura incontida de volúpia e crueldade, para os gregos, no mesmo patamar de importância de Dionísio, erguia-se a figura monumental e sóbria de Apolo.
Voltando-se a Nietzsche, era “o sonho se opondo à embriaguez”. O sonho de um mundo dirigido pela verdade, pelo “logos” da sabedoria, pela beleza fulgurante do sol, gerador da beleza do mundo onírico, formatado pela consciência. Foi o deus délfico Apolo quem “restringiu-se a retirar de seu poderoso oponente, Dionísio, as armas destruidoras, mediante uma reconciliação concluída no seu devido tempo”.
Enquanto o carro que conduz Dionísio está coberto de flores e grinalda, puxado que é pela pantera e pelo tigre, trazendo ao homem a liberdade, permitindo-lhe que “viva” e libere seus instintos e seu inconsciente, que busque seu “extasis”, caminha lado a lado outro carro, aquele do deus Apolo, rodeado por suas Musas a dançar e a cantar ao ritmo ditado por uma cítara. Apolo, o próprio portador da harmonia, da beleza onírica, da verdade, do poder do “logos”, com a coroa de louros premonitória, doada por Dafne.
E é fruto desta união, do conflito e da harmonização entre Dionísio e Apolo, entre o consciente e o inconsciente, da natureza e da consciência humana, que nasceu o melhor da arte grega e, quiçá, da arte de todos os tempos.
Referências: 1. Mito e tragédia na Grécia antiga, Vernant J. P., Vidal-Naquet P.. Ed. Perspectiva.
2. Nietzsche, F.. O nascimento da tragédia. Cia. das Letras.