Em “Longe do perigo”, Theodor Adorno, durante a Segunda Guerra Mundial, definiu um cenário de barbárie onde podemos ler claramente o momento em que vivemos.
“O mecanismo da reprodução da vida, da sua dominação e da sua aniquilação, é exatamente o mesmo, e de harmonia com ele se fundem a indústria, o Estado e a propaganda. “
“Afinal, cumpriu-se o velho exagero dos liberais cépticos de que a guerra é um negócio: o próprio poder estatal deliu a aparência de ser independente dos interesses particulares e apresenta-se agora como o que na realidade sempre foi, como um poder ideologicamente ao seu serviço”.
Adorno nos traça, ao final da Segunda Guerra Mundial, um panorama absolutamente atual, com mais de uma centena de conflitos armados varrendo o Planeta, com o massacre de palestinos pelo Estado de Israel, que se estende a décadas, graças ao armamento e suporte norte-americano.
Mas vamos ao que nos diz o filósofo alemão judeu, exilado nos U.S.A., em “Minima moralia”.
“A vida converteu-se numa sucessão intemporal de choques, entre os quais se abrem vazios, intervalos de paralisia. Mas talvez nada seja tão funesto para o futuro como o facto de literalmente ninguém conseguir já pensar nisso, pois todo o trauma, todo o choque não superado dos que regressam é um fermento de futura destruição”.
“Karl Kraus teve o tino de intitular uma obra sua “Os últimos dias da Humanidade” (final da Primeira Guerra Mundial). O que hoje está a acontecer deveria intitular-se de “Depois do fim do mundo”.
“O total encobrimento da guerra mediante a informação, a propaganda… a morte heroica dos correspondentes de guerra, a mescla da opinião pública sabiamente manipulada com a ação inconsciente, tudo isto é mais uma expressão da estiolada experiência, do vazio entre os homens e o seu destino, em que propriamente consiste o destino”.
“Os acontecimentos são, por assim dizer, substituídos pela sua moldagem reificada, coalhada. Os homens tornam-se atores de um documentário monstruoso que já não tem espectadores, porque até o último deve ter um papel na pantalha”.
A disposição fascista rejeitar a realidade do horror como “simples propaganda”, a fim de que o horror se leve a cabo sem a menor oposição. Mas como todas as tendências do fascismo, também esta tem sua origem em elementos da realidade capitalista, que se impõem precisamente em virtude dessa atitude fascista, que os assinala com cinismo.
“A guerra é, sem dúvida, mais terrível do que todos os horrores, e os que de tal troçam contribuem para a desgraça”.
“Como o próprio fascismo, os robôs são lançados ao mesmo tempo e sem participação do sujeito. Como aquele, unem a extrema perfeição técnica a uma total cegueira. Como aquele, suscitam um terror mortal e são de todo inúteis”.
De uma maneira profética, como se estivesse antevendo o século XXI, nos conduz Adorno: “O pensamento de que depois desta guerra a vida poderá continuar “normalmente” ou que a cultura poderá ser “restaurada” – como se a restauração da cultura não fosse já a sua negação – é idiota. Milhões de Judeus foram exterminados, e isto é apenas um interlúdio, não a verdadeira catástrofe”.
“Que é que esta cultura ainda aguarda? E embora para inúmeros haja um tempo de espera, poderia imaginar-se que aquilo que aconteceu na Europa não tem consequências, que a quantidade dos sacrifícios não se transforma numa nova qualidade da sociedade inteira, na barbárie?”
Se a marcha continua, a catástrofe será perpétua. “Pense-se na vingança dos assassinados”.
“Se se eliminar um número equivalente dos assassinos, o horror converter-se-á em instituição, e o esquema pré-capitalista da vingança sangrenta, que reinou ainda desde tempos imemoriais nas remotas regiões montanhosas, reintroduzir-se-á em grande escala com nações inteiras como sujeito sem sujeito”.
A lógica da história é tão destruidora como os homens que produz: onde quer que penda a sua força de gravidade, reproduz o equivalente do infortúnio passado. O normal é a morte.
“À pergunta sobre o que se deve fazer com a Alemanha derrotada, eu só saberia responder duas coisas. Uma é: por nenhum preço, sob nenhuma condição gostaria eu de ser verdugo ou dar título de legitimidade ao verdugo. E a outra: também não deteria o braço de ninguém, nem com o aparelho da lei, que quisesse vingar-se do acontecido. É uma resposta inteiramente insatisfatória, contraditória e que escarnece tanto da generalização como da praxis. Mas talvez o defeito esteja na própria pergunta e não em mim”.
E conclui como um Profeta Bíblico: “Se, pelo contrário, os mortos não são vingados e se aplica o perdão, o fascismo impune sairá, apesar de tudo, vitorioso, e depois de demonstrar quão fáceis lhe foram as coisas propagar-se-á a outros lugares”.
Uma resposta
Eansio formidável.. Tem pouca gente pensando em profundidade a respeito. Um trabalho dessa qualidade tem que ser valorizado, num país onde pensar é um problema.