“Sobrevivendo nas Sombras”
O esgoto entupido e a solidariedade inesperada
É muito difícil a vida daqueles que conscientemente optaram por viver nas sombras, em todos os tempos negros da nossa história. Eram pessoas para quem o lugar da liberdade era qualquer parte do mundo, já que o do amor à liberdade era o coração de cada um deles; um lugar sombrio, muitas vezes, mas de resistência a um ambiente perigoso.Muito bem, uma das maiores dificuldade que eles enfrentavam era a imprevisibilidade do momento seguinte, ou seja, a impossibilidade quase absoluta de conhecer os fatores que estavam em jogo e que poderiam levá-los à tortura, à prisão e mesmo à destruição física ou psicológica.Quando nos relatou o episódio que passamos a transcrever, um certo sorriso maroto aflorou aos lábios de Pedro Alexandrino. E ele nos disse: “Talvez alguém já tenha falado isso antes, mas saiba que a sabedoria é uma virtude da velhice, que parece vir apenas para aqueles que, quando jovens, não eram nem sábios e nem prudentes, mas amavam seus companheiros de luta e a humanidade de um modo geral”.O cenário é a Argentina e o momento é o princípio do ano de 1975, portanto, às vésperas do golpe militar. Alexandrino e Beatriz viviam em um pequeno apartamento alugado, em meados de 1974, para servir à resistência brasileira. Naquela época eles chamavam esse tipo de moradia de “aparelhos”. Como, após a queda de Allende no Chile e do golpe cívico-militar uruguaio, a imensa maioria dos exilados partira para a Europa, esse local logístico era dos únicos a existirem no “Cone Sul”. Citamos esses fatores apenas para explicar o fato de nesse “aparelho” acumularem-se grande quantidade de documentos de organizações de esquerda, assim como material para falsificação de identidade para pessoas perseguidas, documentos pessoais de militantes que eles nem conheciam, microfilmes, etc., etc..Na data em que se desenvolve o presente episódio, nosso jovem casal tinha consciência de que precisava dar um fim a boa parte daquele material, primeiro porque a própria resistência armada no Brasil havia sido exterminada, tornando inútil boa parte do mesmo e, em segundo lugar, não poderiam correr o risco de serem presos com ele. Foi aí que, por um acaso e por um ato de enorme solidariedade humana, a casa não “caiu”. Mas vamos aos fatos após tanta preparação.Alexandrino fora para o trabalho onde permanecia até por volta das oito horas da noite. Sua companheira encontrara-se com um dos poucos exilados ainda por aquelas bandas, que lhe deu uma “excelente ideia” de como fazer para destruir parte do material sem chamar a atenção, o que ocorreria se lhe pusesse fogo, que produziria uma tremenda fumaça. Ele garantia que já havia realizado e funcionava. Bastava recortar os microfilmes, os documentos e colocá-los num balde com um líquido à base de cloro, comprado em casa de material de construção. Isso feito, deixá-los descançar por algumas horas e jogar tudo no sanitário, dando muita descarga. E assim, nossa ingênua Beatriz procedeu.O vaso sanitário do apartamento, que localizava-se no sétimo andar, tinha comunicação com o do vizinho ao lado e da junção de ambos saia um cano que, juntando-se ao do andar superior, desembocava na coluna central do prédio. Acontece que o material, uma vez colocado no vaso de nosso incauto casal, entupira-o e caminhara para o banheiro do lado vizinho, entupindo-o também por sua vez. A companheira de Alexandrino, durante a tarde, já no desespero, comprara soda cáustica e tocara vaso abaixo. Quando ele chegou, a situação já ficara crítica. A água, onde pedaços de microfilmes e de documentos sobrenadavam, invadira até o tapete da sala da pobre vizinha. Presente estava o zelador, um excelente senhor, que disse que teria de comunicar o fato ao síndico e chamar um encanador no dia seguinte, pois quem provocara o entupimento ou fora o apartamento ao lado ou um dos dois localizados no andar superior.Assim que o zelador saiu, Alexandrino ficou a sós com a senhora Pilar, dona do imóvel. O caso já não permitia mentiras por ser evidente, dado que certos recortes estavam em português. Nosso herói olhou-a bem nos olhos e disse-lhe: “Usted sabe que el problema está en nuestro sanitario”e propôs pagar todos os “daños”provocados ; a senhora olhou-o também dentro dos olhos e disse-lhe muito séria que “por amor de Dios”, fizesse algo para desentupir aquele esgoto naquela noite, antes que alguém mais visse. Nada mais era necessário ser dito.Pelas dúvidas, Beatriz, grávida, começou a preparar uma mala para a fuga no dia seguinte, sem mesmo saber para onde ir. Alexandrino retirou o vaso sanitário e começou, com a mão nua, a tentativa de desobistruí-lo. De repente um grito: “Que merda você colocou aqui? Está ardendo!”. Ela confessou-lhe, quase chorando. “Fiquei desesperada, e coloquei soda”. “Traga vinagre e cada vez que eu pedir, passa no meu braço e na minha mão”.E, naquela noite travou-se uma luta feroz, desesperada, mas sem quartel, digna do comandante Acab na busca por Moby Dick. E a cada hora, o nível do esgoto baixava um pouquinho; de novo, outro tantinho, até que, de repente, ouviu-se o ruído mágico, maravilhoso, de tudo o que a coluna de esgoto, agora liberto, carregava.Amanheceu e com o novo dia, Alexandrino não pôde sair para trabalhar. Tinha mão e braço queimados e enegrecidos pela soda cáustica. Deixou, então, um bilhete embaixo da porta da senhora Pilar perguntando-lhe sobre prejuízos. No dia seguinte, recebeu uma resposta também por bilhete, “no se preocupen, pues para mi, no pasó nada”.De todos os modos, após aquele incidente, nossos amigos prepararam-se para mudar de endereço e o fizeram de um modo organizado, e isso aconteceu uns meses após. O último a retirar os pertences do apartamento foi Alexandrino e para isso pernoitou sozinho no apartamento quase vazio. Por volta das nove horas da noite, soa a campainha. Qualquer visita sempre causava um sobressalto em quem vivia nas sombras. Mas quem se anunciou era a senhora Pilar. Trazia-lhe um lanche, abraçou-o e disse-lhe: “Te voy a hacer una confidencia. Siempre supo sobre Uds, pues tengo un sobrino que está desaparecido. Por favor, compañeros, cuidense; tengan toda la suerte y que se vallan con Dios”.