MEMÓRIAS DE UM SUBVERSIVO (sétimo episódio)

A tortura: torturados e torturadores (segunda parte)

O pseudo-patriotismo “como o último refúgio dos canalhas”*, seguido pelo assassinato do assassinado.

Acreditar na própria morte como um evento mais do que possível, mais do que provável, absolutamente inapelável, apenas sem o seu tempo definido, constitui um pesadelo para muitos homens. A hora da morte é, de cada um de nós, incerta, mas, sempre afiguramos essa hora como situada num espaço vago e longínquo, não imaginamos que ela tenha uma correlação qualquer com o dia começado, e possa até o cair da noite estar ao nosso lado.

Os militante políticos, que empunhavam durante a ditadura militar a bandeira que revolucionaria toda a sociedade, estavam convencidos de que tinham diante de si um espaço de tempo infinitamente adiável antes que os matassem ou prendessem, ou talvez, quem sabe, conseguissem chegar à “vitória final”, numa luta encarnecida. Esse era o amuleto que preservava indivíduos como Pedro Alexandrino, não do perigo, mas do medo do perigo.

No entanto, para a maior parte daqueles bravos combatentes, o tempo não foi tão elástico. Muitos morreram com as armas nas mãos, outros sob as torturas mais ignóbeis. Outros ainda, torturados, esmagados e dilapidados, lograram permanecer nos cárceres e foram mantidos vivos. No entanto, uma vez presos, poucos tiveram a coragem ou a oportunidade de optarem heroicamente pelo suicídio, fugindo ao trucidamento e às informações que os agentes da ditadura tanto queriam arrancar-lhes. É a respeito de um desses heróis que falaremos a seguir.

Pedro Alexandrino fora preso há a alguns dias e estava no centro militar do Doi-Codi, quando foi transferido da cela coletiva para uma solitária. Nesse dia subira para uma das sessões de tortura e recorda-se de que estava na cadeira-de-dragão, quando, de repente, os torturadores que o interrogavam, interrompem os choques elétricos perante um oficial fardado que entrava. A cena era surrealista. Ele, um jovem de menos de vinte anos de idade, nu, amarrado a uma cadeira com fios elétricos que tinham terminações em seus escrotos e numa orelha; ao seu lado, um torturador conhecido com Paulo Bexiga, tais as marcas de varíola no rosto mau, e atrás de uma mesa, a tomar notas, um capitão de Exército conhecido como Homero que, imediatamente, levanta-se à entrada do mais graduado.

“À vontade”, diz o major Coelho para os subalternos. “Esse terrorista de merda vai ou não vai colaborar, capitão? Parece que vocês estão tratando este merda a pão-de-ló”. E, dirigindo-se ao preso: “Vocês querem escravizar esse país, implantar uma ditadura, entregar o Brasil para os russos e os cubanos! Saibam que o Exército Brasileiro tem patriotas que vão esmagá-los, arrancar os olhos e a alma de vocês, não vamos permitir que entreguem o Brasil”. Os olhos castanhos do oficial toldaram-se por um púrpura turvo. As luzes de inteligência humana, perdendo a expressão humana, projetavam-se como olhos de alienígenas de certas criaturas sem nome da natureza. Se o primeiro olhar trazia a mensagem da serpente, quando ele voltou a falar, o segundo possuía o impacto paralizante e mortal da górgona. “Desçam esse terrorista para a cela, tem um outro mais quente que acabou de cair”. Alexandrino teve interrompido seu martírio para que outro fosse barbarizado.

Quando o levavam ouviu um murmurinho, comentário entre dois sicários, agentes da morte, que era a chave para que o deixassem em paz por algum tempo:“Amanhã cai o Lamarca”.

Era já madrugada quando Alexandrino foi despertado pela abertura da cela-forte. Disse-lhe o carcereiro cognominado Marechal: “Você vai pra outra cela”, que era a coletiva. Traziam das salas de tortura, amparado nos braços, alguém que iria substituí-lo no isolamento. Alexandrino por instantes pode ver o rosto de uma pessoa que o impressionaria para toda a vida. Nele se estampava a pureza, a essência humana da sinceridade, num corpo que mesmo alquebrado pela tortura de um dia e uma noite, denotava beleza e muita naturalidade. Alexandrino viu nos olhos de Macarini, pois assim se chamava o nosso herói, que os verdadeiros terroristas, aqueles que se auto-denominavam “patriotas” não conseguiriam pegar o grande comandante Lamarca no “outro dia”.

Pela manhã, já o Marechal chega com seu grito idiota para despertar aqueles que talvez dormissem nas masmorras: “Arruda, dá-lhe milho!” E já tem suas ordens. “Alexandrino não come hoje, vai subir”. Era o anúncio de nova sessão de torturas. Quando sai da sua cela ele vê, também fora do isolamento, o combatente que o substituíra no dia anterior. Ao lado dele um médico ou enfermeiro, desses que juram por Hipócrates, mas rendem culto a Belzebu, aplicando-lhe emplastos na face machucada, enquanto ele mesmo faz, com esforço, a própria barba. Marechal tem pressa para com Macarini e lhe diz: “A equipe do capitão Thomás está esperando para te levar pro ponto-de- encontro!”

No olhar que trocam, Alexandrino não sente desespero, nem dor, mas o orgulho, a pureza e a determinação de quem irá praticar um ato de tal grandeza e majestade que vale por toda uma humanidade. São segundos que valem por uma vida. Enquanto Alexandrino é levado para a continuidade da tortura interrompida, Macarini é conduzido pelo capitão Thomás e jogado no porta-malas de uma “perua” C-14, presente e colaboração da Chevrolet americana para a “patriótica” repressão política.

O tempo passado em tortura não tem a dimensão daquele que transcorre em nosso dia a dia. Um preso torturado é incapaz de se lembrar dos detalhes do que lhe foi perguntado e, muitas vezes, mesmo do que falou, pois a correlação temporal quase que se defaz no processo de tortura. Pedro Alexandrino não sabe se foi após uma hora, duas ou talvez três horas quando ouviu o grito do bando de chacais que retornava do ponto- de- encontro ao qual haviam levado Macarini. “O ponto era frio, não tinha nada de Lamarca!”. De repente, todos os sequazes que o interrogavam deixaram-no a sós e desceram para o pátio onde as equipes de “busca”estacionavam seus carros. Pelo vitrô pode ver que tiravam do porta-malas da “perua”um corpo todo ensanguentado e disforme, corpo que já não podia sofrer e que, mesmo assim recebeu ponta-pés e cuspe daqueles verdadeiros terroristas, que se arvoravam o direito à vida e à morte e que nem mesmo aos mortos devotavam qualquer respeito. Alexandrino ouviu de um dos assassinos: “O desgraçado se jogou do Viaduto do Chá e quando tentei segurá-lo, quase me levou junto, filho-da-puta!”

Se por um lado, custa-nos acreditar até que ponto pode-se corromper a natureza humana, por outro lado, atitudes com as de Macarini, que teve sua vida ceifada aos dezenove anos, mostra-nos os píncaros do amor ao próximo e de entrega a que o mesmo homem pode chegar.

*A frase “o patriotismo é o último refúgio dos canalhas” foi escrita por Samuel Johnson (1709/1784).

O assassinato do assassinado

Os Primeiros de Maio, por décadas e décadas, foram dias de luta dos trabalhadores por direitos e conquistas, sua própria afirmação como classes sociais. Na ditadura Vargas, o peleguismo trabalhista atrelado ao Estado, tentou transformá-los em dias dedicados a festas e shows, enquanto a polícia reprimia os atos que fossem reivindicatórios ou políticos.

Na História, entretanto, os ditadores e as oligarquias sempre reprimiram esses dias. E foi exatamente isso o que ocorreu sob os tristes céus brasileiros de 1970. Sob a feroz ditadura militar, poucos grupos organizados arriscavam-se a se manifestar. Um deles, um pequeno núcleo partidário, realizou a distribuição de panfletos no pátio de esportes em Vila Zélia, no ABC paulista. Um dos coordenadores desse pequeno grupo era um ex- estudante de Faculdade Politécnica que decidira assumir uma experiência proletária, deixando a faculdade e trabalhando numa indústria química. Seu nome, Olavo Hansen.

Preso por esse motivo, distribuição de um panfleto, ele e mais alguns seus companheiros foram encaminhados à Oban, onde nem sequer foram interrogados e, depois, ao DOPS. Foram recolhidos à diversas celas e somente no dia cinco de maio Olavo subiu para interrogatório, onde foi supliciado por mais de seis horas por fascínoras como os delegados Cuoco, Milton Dias, investigadores como Sávio e Campeão, todos filhotes de Fleury, que por esses tempos estava relativamente afastado do DOPS. Foi torturado com choques emitidos por tubo de imagem de televisor, com altíssima voltagem e não desprezível amperagem, que associado ao pau-de-arara e pancadas na região dos rins, provocaram um quadro de insuficiência renal.

Alexandrino foi transferido para o DOPS no dia oito de maio e, por coincidência, colocado na mesma cela que Olavo. Olavo não caminhava e suas extremidades, braços, mãos, pernas e pés apresentavam-se altamente edemaciadas, praticamente já não urinava. Soube pelos outros companheiros que, após insistirem com a carceragem, de que o preso necessitava atendimento médico, um tal de Dr. Ciscato o havia examinado e recomendado “água”, um ou dois dias atrás. O caso, para um estudante de medicina era claro de insuficiência renal; ou se fazia o pronto socorro médico ou ele morreria. Todos os presos pressionaram a carceragem e, finalmente, nesse mesmo dia, Olavo, já inconsiente, já em coma, foi retirado da cela para ser “tratado”.

No dia treze de maio os familiares de Olavo foram comunicados de sua morte. Os legistas que assinaram o laudo da causa atestaram: “parada renal com sinais de envenenamento por Paration”, veneno para ratos.

A distribuição de um simples panfleto custou ao verdadeiro brasileiro Olavo Hansen uma vida que foi duplamente assassinada. Primeiro pela insuficiência renal aguda, fruto da tortura recebida e, depois, pela aplicação na veia, quando moribundo ou já morto, de veneno. Contra seus bárbaros algozes, banalizadores do mal, nada foi e talvez nunca será feito por nossa pobre democracia.

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