Por que ler Proust?

Todo leitor que se predisponha a ler Marcel Proust deve se preparar para um mergulho no desconhecido; antes mesmo de abrir a primeira página de A caminho de Swann, ele necessita ser alertado que penetrará num universo estranho, que algo de novo irá lhe acontecer. Por exemplo, precisa saber que Em busca do tempo perdidonão significa a busca de um tempo que se perdeu, mas que acabou, embora permaneça vivo em determinadas reminiscências da memória afetiva. Ou, visto de outro modo, significa a busca de um “eu” morto, pois a personalidade de Proust é um eu que se dissipa, dissolve-se no tempo sem, no entanto, perder a sua  identidade. Esse leitor deverá, ainda, estar disposto em cada parágrafo a se tornar “um leitor de si mesmo”, num processo retrospectivo de reencontro, vivência e que ao mesmo tempo é esquecimento.

Marcel Proust é desses romancistas fundamentais, cujo livro não pode ser abordado de uma forma tradicional e que, após a leitura possa ser relegado a uma prateleira de estante. Em busca do tempo perdido é uma obra que requer mais de uma leitura e muito meditar. No dizer de Álvaro Lins, ela constitui “a realidade transportada, transformada e transfigurada numa visão estética”, na qual a vida do autor se refletiu.

Seja como for, quem quer que se tenha impregnado de Em busca do tempo perdido ficará para sempre assombrado com a polivalência artística de um autor cuja arte era precisamente a mediação entre a satisfação de uma pluralidade de dons e a exigência de sua transcendência. Trabalho de um gênio!

A obra de Proust, de modo particular, não pode ser bem compreendida com o desconhecimento de seu modo de viver. E esse, por sua vez, interessa-nos na medida em que seja a gênese do trabalho do artista, num trabalho semi-autobiográfico. Proust viveu em plena vida mundana e, posteriormente, fora dela, confinado, num drama inteiramente ligado à sua obra, que é a evocação de uma vida que nasceu justamente quando ele fugira da própria vida.

Mas quais foram os aspectos mais originais de Em busca do tempo perdido?

Uma das condições da genialidade é, dizia Tomas Mann, o fato que o homem de gênio é uma encruzilhada. De todos os lados poderemos chegar a ele, assim como, a partir dele, poderemos seguir em muitas direções. Somente o gênio pode desdenhar caminhos que já foram traçados e apenas ele, sem se aniquilar, pode receber e distribuir todos os caminhos.

Os talentos inferiores, por outro lado, são justamente aqueles desprovidos de genialidade, mas que se julgam encruzilhadas. Eles não são mais que sendas percorridas, já batidas, ressonâncias que não se assumem como ecos.

Marcel Proust, ensinou-nos Tristão de Athayde, possuiu a centelha da genialidade que não se define e não se esgota em uma frase e nem se extingue em uma única nova contribuição ao mundo das criações literárias. “Se foi um gênio da análise, sem dúvida, também o foi da síntese, um destilador de sentenças inumeráveis e profundas, que figuram ao lado das de Pascal ou La Bruyère”.

Ele foi um admirável criador de tipos e sua obra permite que um leitor atento fixe em sua mente figuras absolutamente inesquecíveis. Proust, um incomparável modelador de homens e suas psiquês! Mas ao mesmo tempo, foi também um paisagista perfeito, inimitável, porque nos traz a partir de seu mundo interior os aspectos mais sutis e efêmeros do mundo exterior, uma visão de artista que eterniza as coisas mais imperceptíveis aos nossos sentidos vulgares.

Um subjetivista, dizem alguns. Um impressionista, sem dúvida. Um Manet, um Monet do romance. Não há o que se duvidar. No entanto, se analisado de outro ponto de vista, Proust foi tão objetivo no seu realismo quanto Balzac e por vezes beirou o naturalismo de um Zolá, dado que suas personagens e suas paisagens respiram por si, têm uma realidade própria. Em toda a obra ocorre uma independência da vida que supera e em muito o reflexo de impressões, que são sempre passageiras. Proust é assim, busca abarcar a totalidade.

Ele dissocia as personalidades, e considera essa dissociação um fenômeno normal e mesmo um elemento fundamental da vida do espírito. O homem, para Proust, é por essência o ser que dissocia o que ele toca e que dissipa o que ele é. Nada permanece estável e uniforme no decorrer do tempo. Tudo no homem se move e se decompõe incessantemente, pois a cada dia nossa alma renasce e reparte. Mas a dissociação é apenas o princípio, pois permanece um elo que mantém a persona presa em seu dissociar-se, por exemplo, Marcel, o narrador, será sempre Marcel, assim como Albertine e Swann serão sempre os mesmos que se transformam e se transportam, dentro da enorme multiplicidade de seus eus, no decorrer do tempo.

As recordações, as ideias, as sensações, colhidas no correr da vida, vivem em nós, independentes, por si mesmas. A maior parte delas será consumida durante nosso viver, outras se deteriorarão pelo esquecimento. No entanto, pequenas parcelas abrigam-se em algum canto de nossa memória afetiva e de lá podem ser pescadas por fatos fortuitos, ocasionais, independentes de nossa vontade e nos trazerem o “tempo reencontrado”.

Proust viveu em um meio acanhado. Nunca trabalhou, jamais entrou em contato com a dura vida do dia a dia, tão pouco ombreou com os homens que lutam, que se empurram e que se matam para sobreviver. Homens que batalham pelo pão, ouro ou poder. Apenas duas vezes deixou Paris e a costa normanda, numa curta viagem em companhia de sua mãe, quando visitou Veneza e noutra, quando esteve na Catedral de Amiens, “para ver de perto as ruínas” tão faladas por Ruskin. Não conheceu outros povos, outras civilizações. Viveu ou recluso ou nos Salões da época.

As duas classes sociais que estudou a fundo, a aristocracia e os seus serviçais, pareciam excluir toda e qualquer possibilidade de que por meio delas ele pudesse atingir a universalidade. Proust procurou a essência da vida a partir dos nobres que frequentavam o “faubourg Saint Germain” e os criados que os serviam. Isto é, duas séries de seres humanos pouco interessantes para quem buscava o cerne da vida e do entendimento dos homens. Uma pelo excesso de artificialidade, decadência e de exclusão do mundo moderno em que viviam; outra pelo excesso de subserviência e falta de personalidade, pela vulgaridade e pela incultura. O lado burguês de seus estudos se circunscreveu aos familiares mais próximos e a alguns poucos amigos e amigas; quanto aos operários, ele somente os conhecia por ouvir falar.

Foi desse acanhado campo de observações diretas que Proust tirou todo um mundo de coisas profundas e novas. Todo um estudo do homem que o coloca, na universalidade, ao lado de um Freud.

Mas Proust não foi apenas um analista da alma. Ele viveu o fim de uma era e foi o historiador dessa agonia. O homem e o mundo que ele fixou foi o do ser saciado, exausto, num momento histórico em que as classes sociais se penetravam, os aristocratas se rebaixavam em conluios sórdidos por dinheiro, em que os mais abastados viviam de especulações financeiras e golpes nas bolsas de valores, mas onde ainda se encontrava certa serenidade, repouso no ato de viver. Um cronista da decadência que produziu a crônica impiedosa e fiel de uma sociedade moribunda que desaguou na carnificina da primeira Guerra Mundial.

Na sua “busca do tempo perdido”, quaisquer que sejam os temas da existência humana, neles Proust se engaja, sempre dentro de conceitos sensíveis e pessoais. Assim temos o Proust romancista, o moralista, o naturalista, o crítico de arte, o filósofo, o poeta, o memorialista, o caricaturista, o crítico social. Como poucos, Proust foi um subversivo na literatura e seu perigoso gênio cômico destrói uma a uma as máximas e preconceitos da sociedade em que vivia e que, em seu cerne, por ser humana e inserida no capitalismo monopolista, é a mesma em que hoje vivemos. Daí a absoluta atualidade da obra proustiana.

A escrita de Proust é, à primeira vista, triste e difícil. Pode mesmo chegar a ser irritante por parecer artificial, exagerada, obscura. Perde-se em frases intermináveis, em parágrafos onde a escrita inversa quase é uma constante. Nada acontece, tudo se arrasta. Tudo é relativo, os valores supremos e permanentes perdem todo o seu valor num pessimismo cortante de onde apenas a obra de arte consegue elevar-se. Faz com que, a cada momento da leitura o leitor sinta seu próprio vazio existencial. Mas não é um vazio que caminha para o niilismo, não. Um vazio que busca respostas, que procura sua própria essência.

Num mundo onde poucos leem, em que as notícias nos atropelam via internet, em que as pessoas estão quase sempre conectadas a redes sociais, poderia parecer que Proust estivesse condenado a não ser lido, exceto num restritíssimo círculo de “iniciados”.  Mas não é o que acontece, pois a cada geração, Proust é “redescoberto”.

Talvez o auxílio de algum Vergílio seja importante para conduzir o leitor iniciante pelos meandros de Em busca do tempo perdido; que tome o moderno Dante pela mão como de certa forma o fez o saudoso Otto Maria Carpeaux com um conhecido intelectual e bibliófilo que se queixara ao amigo de não conseguir ultrapassar a trigésima página de A caminho de Swann. Perguntou-lhe Carpeaux quantas vezes ele já o havia tentado. Três, respondeu-lhe. “É pouco. Mas aquele que ultrapassa as cincoenta primeiras páginas não mais consegue parar. Talvez um pouco de Álvaro Lins o ajude.”

O amigo seguiu o conselho e com seu Vergílio ao lado, logrou não somente ler Proust, mas tornar-se um “viciado”, um risco que tão bem salientou Walter Benjamin, pois quarenta anos antes o mesmo ocorrera com ele próprio. O tempo passou e nosso bibliófilo envelheceu e, já quase cego, em seu último leito, contratou um secretário-leitor para que realizasse a última viagem em busca de seu Tempo Reencontrado.

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