Após Ésquilo, Sófocles torna a tragédia grega mais humana; as ações das “personnas” revestem-se de maior responsabilidade perante o destino e por isso mesmo transformam-se em mais exemplares.
O homem da jovem democracia ateniense está numa encruzilhada na definição do direito, em face de decisões que o confundem. No dizer de Vernant, “num mundo de forças obscuras e ambíguas (dialéticas), onde uma justiça luta contra outra justiça, onde o direito nunca é fixo, mas vira e transforma-se no seu contrário.”
Antígona é uma tragédia que dá continuidade às desgraças que pairam sobre os descendentes de Édipo. Antígona, a imagem de mulher-heroína, aquela que desafia o príncipe e a própria cidade em defesa de sua phylia, contrapõe-se à de Creonte (“o príncipe”), aquele que tem por dever a defesa da cidade.
Ao mesmo tempo em que trabalha as ambiguidades, Sófocles rompe com uma série de paradigmas de uma sociedade patriarcal. Antígona a é capaz de viver, sofrer e morrer por um ideal. Creonte é arrastado para a desmedida na defesa da “polis”. O homem no poder muitas vezes acredita estar optando pelo bem, mas é o mal que ele termina por praticar.
Polinices, filho se Édipo e irmão de Antígona, tivera seu trono usurpado pelo irmão Etéocles. Rebelando-se contra a sua própria cidade, congrega aliados para destruir Tebas. Na luta feroz que se segue, a cidade sitiada sairá vitoriosa, pois Etéocles, rei de Tebas e Polinices decidem a sorte da batalha em um combate singular, no qual ambos morrerão. Creonte, que sucede o rei morto, é irmão de Jocasta e o tio dos dois, assim como das duas irmãs Ismênia e Antígona, filhas de Édipo e Jocasta.
Antígona tem como primeiro cenário o palácio real de sua cidade, Tebas. Com Etéocles e Polinices mortos, o exército de Argos em fuga. Creonte é o herói do momento e ordena honras fúnebres para o cadáver de Etéocles, que comandou vitoriosamente a resistência de Tebas; ao mesmo tempo, ordena que o corpo de Polinices, declarado traidor, não receba sepultura, tornando-se pasto de aves e cães. O édito de Creonte é claro: aquele que der sepultura e realizar libações ao traidor da Pátria morrerá.
Antígona pergunta à irmã se ela a ajudaria a dar sepultura a Polinices, compartindo o trabalho e o perigo. Ismênia se nega: “Enterrar o morto que Tebas renegou?”. “Não, irmã, o morto que se revoltou”, contesta Antígona. “Você tem a coragem de colocar-se contra Creonte e o povo?”, pergunta Ismênia. Ao que Antígona sentencia: “Nenhum dos dois é mais forte que o respeito a um costume sagrado. Enterro o meu irmão, que também é teu. Farei a minha parte e a tua se te recusares. Poderão matar-me, mas não dizer que o traí.”
Ismênia ainda tenta convencer a irmã: “Temos que lembrar sermos, em primeiro lugar, mulheres e não podemos competir com os homens; em segundo lugar, que somos dominadas pelos que detêm a força e temos que obedecê-los. Peço perdão aos mortos que só a terra oprime: não tenho como resistir aos poderosos. Constrangida a obedecer, obedeço. Demonstrar revolta inútil é pura estupidez… Eu não desonro nada, apenas não me sinto com forças de desafiar o poder!”
“Deixa-me com minha temeridade enfrentar o perigo! Meu sofrimento nunca há de ser tão grande, quanto gloriosa será a minha morte.” É a fala de uma Antígona que prefere seus laços familiares, já tão destruídos pelo destino, às leis da cidade. Aquela que se revolta contra a própria condição inferiorizada da mulher, que busca fazer com que seus atos também pareçam exemplares.
Chega Creonte e declara-se dono do poder e do trono de Tebas: “Ora, tenho para mim que é impossível conhecer a alma, os sentimentos e o pensamento de um homem antes de tê-lo visto na aplicação das leis e no exercício do poder. Considero um mau governante aquele que não saiba adotar as decisões mais sensatas e que deixe o medo, por que motivo for acorrentar-lhe a língua; e aquele que considere um amigo mais que a própria Pátria, este eu considero um ser desprezível… nunca terei por amigo um inimigo de meu país.”
Entra em cena um vigilante que guardava o cadáver insepulto de Polinices e declara seu medo pelas novidades que tem a transmitir: o cadáver insepulto de Polinices ganhara, durante a noite, sepultura e libações!
O Corifeu intervém: “Não teria sido obra dos deuses?”
Creonte, frente aos cidadãos cometerá a mesma desmedida de seus antecessores ( primeiro Édipo, depois seu filho Etéocles), com o autoritarismo e a soberba que o poder, aparentemente, lhe outorga: “Cala-te, não passas de um velho e néscio… desde quando os deuses se interessam por um cadáver? Quando vistes um deus honrar um malvado?… De todas as instituições humanas, nenhuma como o dinheiro trouxe consequências mais funestas. É o dinheiro que devasta as cidades, que expulsa os homens de seus lares, que seduz as almas virtuosas e incita às práticas vergonhosas… mas aqueles que se deixaram corromper terão o seu castigo.” E ameaça o vigilante e mensageiro de que se não trouxessem os responsáveis pelo sepultamento, todos os guardas seriam pendurados até que a verdade fluísse na tortura, pior que a morte.
O coro dos anciões lhe responde: ”É indigno viver numa cidade aquele que, estando à frente de uma comunidade, por ousadia se habitua ao mal.”
Após sair, o Mensageiro retorna à cena, trazendo Antígona amarrada. “Rei, os mortais nunca devem jurar, pois uma segunda decisão desmente muitas vezes uma primeira intenção… Trago-te esta jovem que foi surpreendida ao cumprir os ritos funerários… Com as próprias mãos recolhia o pó seco e o jogava sobre o corpo do irmão.”
Inicia-se, então, o diálogo central do drama, entre Antígona, a prisioneira, e Creonte, o príncipe: ”Sabias da proibição que eu havia promulgado… e ousastes desobedecer minhas ordens?”.
Antígona: “Sim, porque não foi Zeus quem promulgou para mim essa proibição, tão pouco a justiça divina… e não pensei que teus decretos, mortal que és, pudessem ter primazia sobre as leis não escritas e imutáveis dos deuses (dos costumes)… eu sabia, antes do teu decreto, que teria que morrer um dia. Se devo morrer antes do tempo, tendo vivido no meio de incontáveis desgraças, aos meus olhos isto tem vantagens… Se apesar de tudo te parece que agi como insensata bom será que saibas que talvez seja um louco quem me trata como louca.”
Creonte, cego pelo poder, exorbita as funções que a ponderação impõe a quem detém o mando. Proclama a sentença de morte de Antígona e não satisfeito, também a de Ismênia, por suspeitar de sua ajuda à irmã. Antígona dirige-se ao coro de cidadãos: “Todos os que aqui me escutam cumular-me-iam de elogios se o medo não lhes cortasse a língua. Mas os tiranos contam entre suas vantagens o poder fazer e dizer tudo o que quiserem… Não nasci para compartilhar o ódio, mas apenas o amor.”
A cegueira que se apodera de Creonte faz com que ele desconfie de Ismênia. Interrogada, esta diz-se culpada sem o ser e quer partilhar a pena com sua irmã. A menina desafia corajosamente o poder, mas Antígona não lhe permite o sacrifício. “Salva a tua vida: não te invejo se conseguires conservá-la… tu preferiste viver; eu, em contrapartida, escolhi morrer… a minha alma há muito tempo está morta, e já só é capaz de ser útil aos mortos.”
É Ismênia agora quem afronta Creonte: “E vai matar a noiva de teu filho?” (Antígona é noiva de Hermon). A tergiversação própria de tiranos se faz ouvir: “Será Hades e não eu quem porá fim a estas núpcias.” O destino de Antígona está traçado.
Entra Hermon, o mais novo dos filhos do rei; ouve do pai uma longa pregação sobre a submissão dos filhos: “Quem souber governar bem a sua família também saberá reger a justiça do Estado”. Tal qual Édipo o fizera, Creonte por soberba dita a própria sentença para quando cair em desgraça. “Não há pior peste que a desobediência; ela devasta as cidades, transtorna as famílias e empurra para a derrota as lanças aliadas”. À sociedade patriarcal da época Sófocles dita a frase final: “É melhor, se preciso for, cair pela mão de um homem do que se ouvir dizer que fomos vencidos por uma mulher.”
Hermon tenta ainda tirar seu pai da cegueira, da “ate”, que o possui: “O homem do povo teme demasiado o teu olhar para que se atreva a dizer-te o que te seria desagradável de ouvir. Mas a mim é fácil escutar na sombra da cidade, de como ela se compadece por essa jovem, condenada à morte por não consentir que o irmão, morto na luta, fique privado de sepultura… Não te obstines em manter como única opinião a tua, julgando-a razoável. Todos os que pensam possuir uma inteligência ou um gênio superior aos outros, quando se penetra dentro deles, mostram apenas a nudez de sua alma… Ao homem, por sábio que seja não lhe deve ser vergonhoso apreender com os outros e não aferrar-se demasiadamente a seus juízos… Cede pois em tua cólera e modifica atua decisão.”
Mas Creonte não aceita que a cidade lhe diga o que fazer; como tirano, coloca-se acima dos cidadãos. Hermon conclui: “Só mesmo num deserto terias o direito de governar sozinho… Vejo-te, com efeito, violar a Justiça”.
Estabelecem-se os princípios da democracia, da força do cidadão e da Justiça que delimitam o poder do soberano. A alternativa é o “governo do deserto”.
Creonte decreta para Antígona a morte “natural” por emparedamento em uma caverna, dizendo-se “livre de culpas”. Antígona, saindo do palácio para o sepulcro que lhe foi destinado, fala aos cidadãos de Tebas: “Caminho para o Hades sem conhecer o himeneu…”
Corifeu tenta consolá-la: “Vais para o abismo dos mortos sem ter sido alcançada pelas doenças que emurchecem, sem ter sido submetida à servidão por uma espada vitoriosa; só entre todos os mortais, por tua própria vontade livre desces ao Hades”.
Antígona morrerá por não desligar-se dos seus; seus laços familiares são muito mais fortes que os de sua cidadania; morre sem himeneu pois não conseguiu abrir-se para o outro, para Eros, na observação de Vernant. Eros e Dionísio são desprezados por Antígona, mas não somente por ela, também por Creonte, que pagará pela consequência de seus atos.
Entra em cena Tirésias, o “vidente cego”: “Creonte, é preciso que saibas que a Fortuna te colocou novamente sob o fio da navalha… uma desgraça, por culpa tua, ameaça a cidade. Os altares estão repletos dos restos mortais que os animais arrancaram do filho de Édipo. Pense nestes presságios. O erro é comum a todos os homens; mas quando se cometeu uma falta, persistir no mal em vez de remediá-lo é atitude de um desgraçado e insensato. A teimosia é mãe da estupidez… Que valor há em matar um morto pela segunda vez?”
Atitude semelhante à de Édipo no passado, é a assumida por Creonte. Duvida do oráculo e acusa Tiréias ou por haver-se deixado subornar ou de estar demente. Tirésias faz sua previsão oracular: “Um herdeiro do teu sangue pagará por esta morte, pois condenaste um ser que vivia na superfície a viver em um sepulcro e aquele que está morto, a viver na superfície.”
Finalmente, o rei sente-se abalar em suas “certezas” e readquirindo consciência de suas ações intempestivas pergunta pela primeira vez ao coro, que representa os cidadãos, o que deve fazer.
Chega um Mensageiro. Creonte, que era digno de inveja por deter o poder absoluto e os filhos nobres, agora tudo perderá. Relata-lhe a morte de Hermon pelas próprias mãos. Entra em cena Eurídice, mulher de Creonte, a quem o mensageiro detalha o suicídio do filho ao lado do cadáver de Antígona, pendurado por uma corda no pescoço. Enlouquecida pelas desgraças que se abateram sobre seu lar, Eurídice retira-se e também buscará consolo na própria morte.
Creonte traz o corpo do filho nos braços: “Oh irreparáveis e mortais rancores de minha mente extraviada! Vedes o assassino e a vítima de seu próprio sangue! Oh sentenças cheias de demência! Filho, tua morte não foi causada por tua loucura, mas pela minha.” É, então, comunicado de mais uma desgraça, a da morte de Eurídice. “Antes de morrer amaldiçoou-te”, diz o Mensageiro. Creonte implora ao coro que o carreguem para longe, pois “Tudo o que eu tinha caiu por terra e uma imensa angústia abateu-se sobre minha cabeça.”
O príncipe que defendera e libertara a cidade do cerco inimigo, que desprezava os que traem a Pátria, que considerava o amor à cidade acima de todos os outros, também é arrastado pela desgraça, e tal qual Édipo, sem forças para matar-se, será um andarilho a implorar que a vida se extinga.
O coro encerra o espetáculo: ”A prudência é, na verdade, a primeira fonte de ventura. Não se deve ser ímpio para com os deuses. As palavras insolentes e altaneiras são pagas com grandes infortúnios pelos espíritos orgulhosos, que não aprendem a ter juízo quando chegam as horas tardias da velhice.”