Dostoiévski e “O crocodilo”, marco fundador do surrealismo

“O crocodilo”, escrito em 1864, é um conto satírico sobre o comportamento da burocracia estatal e do funcionário público engolido pela máquina.

O momento político-econômico  é o da inserção da Rússia agrária no capitalismo, refletindo as profundas contradições entre aqueles que defendiam o “progresso do ocidente”, com a entrada do capital estrangeiro para a exploração das riquezas russas e a criação de sua própria burguesia e os “conservadores”, que buscavam uma solução originalmente russa para os problemas russos.

Dostoiévski, pese seu conservadorismo, era absolutamente anticapitalista e na sua ambiguidade via na importação dos hábitos ocidentais e no avanço do capital estrangeiro, os maiores riscos para os “humilhados e ofendidos” da Rússia.

Sob enorme influência dos “Contos Fantásticos” de Hoffmann, através de “O crocodilo”, um conto inacabado, Dostoiévski assinala uma nova senda literária, o Surrealismo, ao qual  recorrerá Kafka, após cinquenta anos, ao escrever sua “Metamorfose”.

Não por mera coincidência, logo no ano seguinte, o grande mestre escreveria um  outro conto, “O homem do subterrâneo”, que sem dúvida consubstancia a obra inaugural do Existencialismo Moderno.

No “O crocodilo”, um mero funcionário público, com passagem marcada para uma viagem pela Europa que faria com a esposa, vai, por insistência desta, a uma exposição de animais organizada por um alemão. Basta um pequeno descuido e o crocodilo, imóvel em sua bacia, engole o rapaz, que, entretanto, não morre, mas encontra abrigo numa enorme barriga extensível e de lá principia a filosofar, a sonhar e a acreditar-se um “ser superior”.

O ambiente político e social

Sob o czar Nicolau I (denominado por Tolstoi de Nicolau “Palkine”, o espancador), Dostoievski envolveu-se no grupo Petrachevski, de contestação humanística e literária ao regime. Era o ano de 1848, aquele que foi marcado pelas sublevações em toda a Europa, denominado de “A Primavera dos Povos”, marcado pelo lançamento do Manifesto Comunista, por Marx e Engels.

Na Rússia, o país mais atrasado de toda a Europa, aumentaram as perseguições aos revoltosos e aos intelectuais que clamam por reformas liberalizantes, como a libertação dos servos, a abolição dos castigos corporais e o absolutismo czarista.

Em abril de 1849 Dostoievski e todo o seu grupo são presos. Condenado à morte, na hora da execução esta foi comutada para trabalhos forçados, o escritor sofrerá durante nove anos na Sibéria, quatro dois quais sob trabalhos forçados. Seu retorno a Petrogrado ocorrerá somente em 1859.

Em 1863 a Rússia entrou em guerra contra uma coligação formada pela França, Prússia e Inglaterra, na chamada Guerra da Criméia, que permitiria a seu vencedor o controle do Mar Negro. Ela termina em 1858, com a derrota dos russos.

Durante a guerra, faleceria Nicolau I, em 1855, tendo sido sucedido por Alexandre II.

As crises política e econômica forçam o czarismo a realizar, pela primeira vez a algumas reformas como:

Abolição gradual da servidão, processo que graças às altas indenizações a serem pagas pelos ex-servos, demoraria mais que vinte anos para se consolidar. Logo, os camponeses, nominalmente libertos, ficaram economicamente dependentes dos senhores feudais.

Organização de governos locais, os zemtvos, ou assembléias, sempre comandadas pela aristocracia e dependentes de sanções centrais.

Reforma judicial com criação de tribunais especiais para camponeses, com jurados e juízes eleitos.

Reformas no Exército, com a redução do castigo por chibatadas imposto aos soldados, que não raro os levavam à morte. Ao mesmo tempo, institui-se o Serviço Militar Obrigatório (uma das mães dos males modernos, segundo Tolstoi).

De todo os modos, a reforma de Alexandre II, apesar de modesta, foi uma prova evidente de que o paquiderme- crocodilo do Estado Czarista poderia mover-se. E é nessa conjuntura que surge “O crocodilo”.

O escritor

Os anos de 1859 a 1865 foram transformadores para Dostoievski. Ao retornar do exílio a Petersburgo, junto com seu irmão Mikhail, fundou a Revista “O tempo”, cujas páginas definirão seus pensamentos sobre os destinos da Rússia. Em “O tempo” será também publicado, em forma de folhetim, “Humilhados e ofendidos”.

Em 1862, pela primeira vez, aos quarenta e um anos de idade, Fiodor viajará à Europa onde descobrirá duas paixões: uma pela roleta e outra por Pauline Suslova, uma estudante russa liberada de preconceitos, que pousava de intelectual. Suslova com seus dezesseis anos torna-se amante do escritor que principiava a ser famoso. Mas a paixão de Dostoievski não era correspondida pela jovem; troca-o por um novo amante e ele, um ano após a partida, retorna à Rússia.

Em Petrogrado aguarda-o a esposa tuberculosa Maria Dmitrievna, com quem mantinha uma relação tão somente de amizade. Logo após, falece seu irmão Mikhail, e a revista “O tempo”, é fechada pela censura.

Abre uma nova Revista “A época”. Mas o destino reserva-lhe um tempo de profunda solidão. Em 1864 falece a enfermiça Maria Dmitrievna. O escritor, que sempre teve enormes problemas de relacionamentos interpessoais encontra-se totalmente só, com dívidas e, tendo de cuidar do sustento de si mesmo, da família do irmão morto e de um enteado.

É quando escreve “O homem do subterrâneo”, uma obra de um pessimismo azedo, anti-racionalista, com enorme influência de seu estado de espírito depressivo e absoluto isolamento, logo após o seu trabalho mais irônico: “O crocodilo”, princípio da fase de maturidade criativa.

“O crocodilo”

Dostoievski é o escritor-filósofo por excelência. A grande força de sua obra é dada pela intensidade dramática e ficcional de suas idéias, idéias que deixam de ser puramente abstratas e transformam-se sempre em algo vivo tão carnal quanto o possa ser um crocodilo, um funcionário público, sua mulher “deliciosa” e um alemão com sua “mutter”.

O crocodilo é o animal de estimação do estrangeiro, um alemão, próprio para exibições públicas, e ele possui um nome e goza do status de filho. Quando engole o pobre funcionário Ivan, o alemão teme pela saúde do paquiderme e brada por indenização, enquanto a esposa “bombom” do funcionário, grita para que se retire do animal o marido engolido.

Mas ninguém a acompanha nessa pressão contra o proprietário, pelo contrário, ela é até mesmo ameaçada de maldição pela “Crônica do Progresso”.

A surpresa surge quando o engolido fala de dentro do crocodilo e declara estar muito bem e que lá poderia viver pelos próximos mil anos. Ele e o crocodilo tornam-se uma atração pública e o preço do ingresso cobrado pelo alemão para a visitação pública quintuplica. Diz o funcionário de dentro de sua maquinaria: “É preciso considerar as coisas do ponto de vista econômico.”

O capitalista com sua engenhoca já se crê um futuro milionário, enquanto o funcionário engolido apesar de estar preocupado em como será visto pelos chefes “o contratempo de estar na barriga do paquiderme”, sonha com a fama, e em seu delírio já se descortina dentre Ministros de Estados, aconselhando-os, participando de dentro do crocodilo em um Salão Mundano a ser inaugurado, com toda a pompa burguesa, por sua esposa, a doce e volúvel Eliena.

Após o susto inicial, Eliena, a mulher bombom, preocupa-se apenas consigo mesma, com o divórcio e em como ficará a pensão do marido. Ela se ocidentalizou, perdeu as perspectivas da mulher russa. Na mesma noite do infortúnio do marido, diverte-se em um baile de máscaras, mantendo próximo a si um amante. Dostoievski, rejeitado pela linda e volúvel Pauline Suslova na vida real, espelha nela a Eliena de seu conto.

O narrador, amigo de Ivan e como o ele mesmo funcionário público, corre atrás de um colega mais experiente, Timofei. Mas dele não ouve nenhum tipo de indignação pelo fato de Ivan ter sido engolido pela máquina, afinal, por que tanto espanto “por algo tão normal?”

Timofei vai além, fala do alemão como o agente indispensável para o progresso, que o aporte de capital estrangeiro deveria ser tal que todas as terras russas pudessem ser por ele compradas e com lucro, posteriormente divididas, exterminando-se as propriedades comunitárias, tão pouco produtivas.

No entanto, o delírio do pequeno funcionário público engolido não cessa. “Desse crocodilo sairão a verdade e a luz”. Reconhece claramente que o crocodilo, por ser oco, tem uma única função: “engolir homens”.

O amigo do engolido ainda possui algumas esperanças em artigos sobre o amigo que possam surgir na Imprensa. Nova decepção! A “Folha” publicou o assunto de uma maneira tão destorcida que levava o leitor a crer que um grande glutão ingerira num banquete pedaços do crocodilo em exibição.

Outro jornal, “O Cabelo”, estampou: “Um estrangeiro, dono de um crocodilo, chega a nosso país para exibir seu animal. Apressamo-nos a saudar um novo ramo de indústria de que carecia a nossa pátria… Pois bem, ontem entra no local da exibição um homem muito gordo e embriagado e foi se meter justo na goela do animal que não tinha outra coisa a fazer senão engoli-lo. Nem os gritos do domador, nem os da polícia, conseguiram acordá-lo… e o pobre ‘mamífero’, desfazia-se em lágrimas inúteis por ser obrigado a engolir um intruso que dali não queria sair”.

Dostoiveski, na voz do jornal proclama ser o paquiderme um “mamífero”. Muitos viram nisso um erro do escritor pelo pouco contato com os filhos do “reino dos Faraós”. Ora, que melhor cognome para a máquina que engole seres humanos que não o de “mamífero”?

O amigo do engolido sente-se estupefato com a insensibilidade geral, mas afinal, a não ser para o próprio pequeno funcionário que se sente enaltecido  na barriga do paquiderme, quem por ele se importa?

Tornou-se apenas um insignificante parafuso da máquina que engole gente, a burocracia estatal!

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