Os conceitos de Direita e Esquerda acompanham o homem desde suas primeiras construções históricas e míticas.
Se tomamos por base os relatos de raízes bíblicas, adentraremos tanto no campo da História quanto do mito, e veremos que cada autor que versa sobre os mesmos empresta-lhes a cor, o tom e o calor literário que lhes são próprios.
Dentro dessa perspectiva, debruçamo-nos sobre alguns pensadores, Herman Hesse, Thomas Mann, Simone de Beauvoir e José Saramago, alguns dos que realizaram suas buscas no poço profundo da história da humanidade e desde lá realizaram com urdidura própria a tessitura de duas das principais antípodas que marcaram desde sempre História da humanidade: a Direita, representada pela raça dos Eleitos, muitas vezes apolíneos, e a Esquerda, focada nos “guenos” que trazem a marca de Caim, a da revolta, assim como o poder dionisíaco da cor vermelha.
Foi El Eloim, o deus dos judeus quem desencadeou no irmão desgraçado o aguilhão da inveja. Ao assassinar Abel, Caim foi amaldiçoado pela divindade e condenado à peregrinação sem quartel, sem Pátria e nem lar. Ao marcar-lhe na testa um sinal, Deus o estigmatizará e aos seus descendentes como a estirpe bastarda, que, sempre que puder, tratará de “prejudicar a raça eleita” por Ele como a legítima.
Dentro do guenos mítico de Caim estará Ismael, o filho renegado de Abraão, fruto que fora do sexo praticado com a escrava egípcia Agar. O contraponto do “selvagem” Ismael será Isaac, o Eleito, do centenário Abraão com Sara, a esposa preferida.
Isaac, por sua vez, terá dois filhos com Rebeca. Esaú, o primeiro a nascer e que deveria herdar a primogenia e a bênção, e Jacob, o segundo. Mas Jacob, mediante engodo, irá sobrepor o irmão, o peludo, o “vermelho” Esaú e será abençoado em seu lugar, o que significa deter a herança paterna e o vínculo com a Divindade.
Depois do grande feito, Jacob, acossado por Esaú, fugirá com muito medo para as terras de seu tio Labão. Sob o teto deste receberá duas esposas: Lia, a loira de olhos remelentos e sua irmã Raquel, a favorita. Lia será a mãe de seis dos filhos de Jacob, os israelitas de olhos também inflamados que, no futuro, deverão se curvar ante o Eleito, José, um dos filho de Raquel.
De todo modo, no passado bíblico, a estirpe de Caim será para todo o sempre uma autêntica sombra da raça Eleita, às vezes existindo tão somente para configurar legalidade àquela, um negativo contendo a inversão dos traços especiais dos Eleitos, tornando possível sua própria existência. Por exemplo, será Labão, o “demônio vermelho” quem permitirá que Jacob se esconda pelo tempo necessário da fúria do seu irmão Esaú e permitirá que crie fortuna própria, novamente através do engano e do roubo ao sogro.
Herman Hesse é um pensadores que refletem sobre a oposição mítico-bíblica entre as duas estirpes antagônicas. Em Demian, ele narra a história de um jovem, Sinclair, criado por pais religiosos e ortodoxos que, de repente, se vê num mundo bem diferente daquele apregoado pelos mesmos. Atormentado pela falta de respostas às perguntas que se faz, procura-as na introspecção, uma senda sempre profunda, insidiosa e, muitas vezes, perigosa.
Foi nesse caminhar que ele chegou até Demian, um colega de classe precoce e envolvente, que para Sinclair encarnará a árvore do saber. Com Demian provará do crime, da amizade e das incertezas, e ao se rebelar contra as convenções sociais, Sinclair descobrirá não apenas o doce sabor da independência, mas também o poder que possui de praticar o bem e o mal. E Demian recrutará o amigo para a estirpe amaldiçoada pela divindade: a de Caim, aqueles que possuem a capacidade de diferenciar e exercer tanto o bem quanto o mal.
Na família do jovem e Sinclair estarão formatados os protótipo dos dois extremos bíblicos. Os pais simbolizando Abel, o Eleito, o sedentário, cumpridor dos deveres exigidos pelo Altíssimo e o filho, Caim, o vermelho, errante pela própria característica do pastoreio, descuidado e, mesmo, desobrigado das obrigações religiosas.
A origem mítico-bíblica do dualismo da Direita e da Esquerda também é narrada com precisão por Thomas Mann em “José e seus Irmãos”. O dualismo atravessa toda a obra, sendo mesmo o seu “leitmotiv”, um reflexo da dualidade ideológica em que Mann se encontra. O mito traduzido fala-nos de uma dualidade direcional, de dois caminhos e comportamentos a assumir perante a vida, por onde descendem parentescos e filiação de almas. No fundo são duas árvores que se entrecruzam e que para o observador desatento podem se confundir com apenas um único nascedouro.
Perscrutada, através do “poço insondável que é o passado da humanidade”, a eternidade humana nos conduz à própria criação das árvores do bem e do mal, em que o ser, o nada, a verdade, a mentira, a justiça, a injustiça, formam um só tronco, uma só raiz. Mas quando vista de perto, olhada através de lentes humanas, as raízes se bifurcam na justa medida do que é duplo: árvore e caminho da direita; árvore e caminho da esquerda! Isso não exclui que elas se entrelacem, que se comuniquem e permutem e que a dialética se firme: tudo aquilo que ontem possa ter sido esquerda, hoje se haja se transformado em direita e vice-versa.
Em toda a obra de Mann pululam existências que remontam à estirpe sombria e reprovada pela ordem reinante, aquela que carrega a marca imposta pela Divindade. Seus personagens saltam aos olhos, pois a cor que deles emana é vibrante, alegre, vermelha, que também é a expressão do contestador, o símbolo dionisíaco. Pelo menos é esse o modo como a Ordem, a Direita, os Eleitos enxergam a questionadora, pois é sempre espoliada, a Esquerda. Quando em disputa, é a Direita quem vence e acaba por apossar-se do poder, da bênção e das heranças, empregando a astúcia, o engano, quando não a violência. A Esquerda somente é vencedora quando transmutada em Direita.
A Direita, os Eleitos como Isaac, Jacob e José, é sempre mais inteligente que os Vermelhos, os descendentes de Caim. Entretanto, ao mesmo tempo, ela é mais canalha, sua espiritualidade tem a sagacidade daquele que traz em si a maldade, a maldade de quem já se sabe absolvido de qualquer ato, por mais abominável que tenha sido, pelo seu Deus.
Jacob que em sonhos luta com um anjo (ou um demônio) e como fruto da luta onírica se afigurará coxo pelo resto da vida, dará a si mesmo o título de Israel, o guerreiro de Deus. Raquel, a beleza frágil, mas que gera José, o décimo primeiro varão, será o Eleito pelo pai como primogênito. Ora, o ódio dos irmãos preteridos por Jacob desembocará na venda de José aos medianitas do deserto, da estirpe dos vermelhos.
Judá, o quarto filho de Jacob, uma vez José dado como morto, ganhará os direitos de primogenitude e de integrar-se à Estirpe dos Eleitos graças às artimanhas de Tamar. A moça inicialmente se insinua junto ao velho Jacob até que o patriarca lhe conceda o casamento com os dois filhos de Judá. O primeiro não resiste ao acasalamento e morre; o outro, Onan, é punido por Deus por negar-se a depositar seu sêmen no interior do sexo da mulher. Tamar, então, age como prostituta, e por meio desse engodo, logra desposar Judá e garantir-lhe o status de Eleito junto ao Deus de seus ancestrais.
Assim agem os da estirpe dos Eleitos. E assim atuam, por trazerem em si a inteligência das coisas Divinas que advêm de sua condição de eleição, não ocultando sua forte inclinação pela sabedoria mundana. Desta forma, os Eleitos não se privam de nada, nem mesmo de relacionarem-se com os Vermelhos, desde que isso lhes traga benefícios.
Simone de Beauvoir dizia que a Direita “agia” enquanto a Esquerda era a portadora da “inteligência”. A origem mítico-bíblica de ambas prova exatamente o contrário. Os Vermelhos trabalham, são espoliados, enganados. A Direita é inteligente, ambiciona e consegue o poder e vive a “meditar” em como conservá-lo, custe o que custar, mesmo que o custo seja que a Esquerda governe em seu nome.
O Eleito, com efeito, tem acesso ao conhecimento da Divindade e consegue dar um nome, o do seu próprio Deus e graças a essa façanha da inteligência humana obtém o conhecimento de si mesmo! Como não haveria de amá-lo e como não dedicar ao Eleito amor, graças, generosidades a quem conseguiu ofertar-lhe a Inteligência e um Nome?
Pois exclusivamente graças ao Eleito que Deus se reconhece! O Deus que foi o de Abraão, de Isaac, de Jacob-Israel e de José resultou num Deus que é Uno. Séculos após, também Moisés, aos pés do Monte Sinai, contribuirá para essa criação que é coletiva. “Em certo sentido Abraão era o pai de Deus; dera-lhe o Ser percebendo-o e pensando-o. As poderosas peculiaridades que Abraão lhe atribuíra eram-lhe próprias originalmente e não fora Abraão o seu autor. Mas de certo modo não o teriam sido afinal quando as reconheceu, pregou, e, meditando, tornou-as reais? As poderosas qualidades de Deus eram coisas que existiam fora de Abraão, mas que ao mesmo tempo existiam dentro dele. O poder de sua alma, em certos momentos, pouco se distinguia delas, entrelaçando-se e confundindo-se nelas conscientemente. Foi esse poder a origem do pacto que o Senhor fez com Abraão.” (“José e seus Irmãos”)
Ora, devido o fato de ser humano, demasiadamente humano, esse Deus é ciumento. O Eleito sabe perfeitamente que é criatura da criatura de seu próprio pensamento. Pensamento que obriga Jacob a manter distância de todos os demais, pois estava a “meditar”. A “meditar” consigo e com o seu Deus interior.
O Deus de Abraão alicerça uma Aliança em que a criatura se tornará criador. “Não devemos nos esquecer de que o rito da circuncisão, tomado dos egípcios como prática exterior, tinha adquirido há muito na família de José um significado místico especial. Era o conúbio ordenado e determinado por Deus entre o homem e a divindade, sendo executado naquela parte da carne que parecia formar o foco do seu ser e sobre o qual era proferido todo voto físico. O pacto de fidelidade com Deus era, pois, de natureza sexual e, nesse sentido, contraído com um criador e senhor ciumento, que insistia em sua posse exclusiva.” (“José e seus Irmãos”)
Para concluir nosso ensaio, visitemos José Saramago que em seu “Caim” descreve o momento de espanto em que o Vermelho, o amaldiçoado, mal podia crer naquilo que seus olhos insistiam em lhe revelar. Tratava-se do povo de Israel quando de sua fuga da escravidão do Egito, sob o comando de Moisés. “Não bastavam Sodoma e Gomorra arrasadas pelo fogo, pois justamente ali, no sopé do monte Sinai, ficara patente a maldade do Senhor”. Sob o comando de Josué (a mão armada de Moisés) os homens da tribo de Levi, os Eleitos haviam matado homens mulheres e crianças a ponta de espada, “três mil mortos só porque o Senhor havia ficado irritado com a invenção de um suposto rival na figura de um bezerro”.
Pela boca de um Caim redivivo, Saramago conclui a respeito do Deus de Abraão e de Moisés: “Não há dúvida de que esse Senhor um dia irá chamar-se o Deus dos Exércitos dos Eleitos, aliás, não lhe vejo outra utilidade”.
E assim é, foi e será! Mesmo porque, os mitos retornam na História, são de per si atemporais e onipresentes.