Sartre e Camus: o grande debate que alcança os dias de hoje.

A relação entre Sartre e Camus começou por volta de 1940, primeiramente com a descoberta mútua dos livros editados, e, posteriormente, com a amizade pessoal, que durou toda uma década.

Primeiramente, Camus realizou uma resenha absolutamente entusiasmada de “A náusea” de Sartre, escrito em 1938. O personagem Roquetin insistia nos traços repugnantes da humanidade ao invés de fundar em algumas de suas grandezas os motivos para se desesperar. A maioria das pessoas desfrutaria de uma liberdade que lhes era inútil. “Aliás, será a liberdade sem limites que os levará a tropeçarem em suas próprias vidas ou encontrarão seu próprio fim?” A imagem de Roquetin ao final do romance é a de um homem sentado em meio às ruínas de seu presente, de seu passado e de sua própria vida.

Sartre, por seu lado, entusiasmara-se pelo “O estrangeiro” de Camus: Meursault é claramente um indivíduo inconsequente e destituído de objetivo. “O absurdo não está nem no homem e nem no mundo se os examinarmos isoladamente; mas como a característica essencial do homem é estar no mundo, o absurdo acaba por coincidir com a condição humana.”

Filosófica e politicamente muito próximos, eles eram frequentemente vistos como estando juntos na resistência ao nazi- fascismo, embora o comprometimento de Camus tenha sido muito mais importante que o de Sartre. De qualquer modo, ambos tornaram-se os escritores mais célebres na França após a libertação e foram os que mais arrebataram as atenções da esquerda intelectual e, de certa forma, a formataram, por quase duas décadas.

Ao final de 1944, após a expulsão dos alemães, o PCF ( Partido Comunista Francês) tinha 400.000 filiados e praticamente todos os grandes sindicatos operários  seguiam suas orientações. Em 1946, este número chegou a 800.000 e a máquina partidária possuía 14.000 funcionários. Nas eleições gerais do final do ano o Partido obteve quase um terço dos votos e os Ministérios da Educação, Segurança Social e Polícia ficaram sob seu controle. As transformações socialistas pareciam estar ao alcance das mãos.

Quando em 1945, Os Estados Unidos utilizaram suas bombas atômicas no Japão, L’Humanité (jornal oficial do PCF) enfatizou a “mais sensacional descoberta científica do século”, enquanto que Camus, editor de “O Combate”, “ela significou que a civilização tecnológica acabou de alcançar seu último grau de selvageria”. “Não há senão uma coisa a tentar: a vida média e simples de uma honestidade sem ilusões, de lealdade sábia, de obstinação que reforçam tão somente a dignidade humana.”

Desde 1947 fez-se sentir certo distanciamento político entre os amigos. Sartre publica “Os Caminhos da liberdade” onde Brunet entrega sua subjetividade à causa universal historicamente ordenada. E em “O mito de Sísifo”, que Camus publicara alguns anos antes, após deixar o Partido Comunista, ele descreve o mundo como sem sentido e sem nenhuma coerência, um contraponto da visão comunista do sentido da História e da importância do progresso.

Mais tarde Camus concluirá: “Esta luta entre a esquerda livre e a esquerda progressista é o problema essencial de nosso movimento.”

Nesta etapa da amizade entre ambos, enquanto para Sartre a atividade do homem constitui um mundo significativo a partir da existência bruta e sem sentido, para Camus o absurdo é um dado intransponível da experiência humana.

No entanto, será que a realização do absurdo exige o suicídio? Camus responde: “Não. Exige revolta!” Em Camus, os locais do pensamento e da ação estão no indivíduo e não no Partido. Para Camus, a lucidez não concede espaço à esperança, pois o mundo é um caos, não há amanhã, já morremos. Num universo subitamente privado de ilusões e de luzes, o homem se sente como “O Estrangeiro.”

No pós-guerra, o existencialismo fundado por Sartre, foi uma febre cultural que contaminou quase toda a intelectualidade. Enquanto Camus rejeitava o rótulo de existencialista, Sartre o tomava como exemplo de sua nova teoria do engajamento político.

“A peste” de Camus simboliza o anti-heroísmo na determinação de fazer o que deve ser feito diante de uma ameaça total. As equipes sanitárias fizeram o que deveria ser feito porque sabiam que era a única coisa a fazer e decidir não fazê-lo é o que seria incrível. A situação o exigia e isto era tudo. Combater a pestilência para Rambert é a preocupação de todos e somente o “eu coletivo”, exigindo solidariedade de equipe e aceitação do risco, pode realizá-lo. Quando Tarrou e Rieux nadam juntos, o descanso por momentos na luta é o respirar da liberdade, pois a comunhão, que somente ocorre entre combatentes, não requer palavras. E ao se perder toda a esperança é quando o homem encontra a si mesmo, pois ele sabe que apenas pode apoiar-se em si próprio. (http://proust.net.br/blog/?p=301).

“A república do silêncio”, assim como “As moscas”, de Sartre era a resistência ao nazismo. “A resistência  tinha a nossos olhos o valor de um símbolo; e é por isso que os resistentes estavam desesperados: sempre símbolos! Uma rebelião simbólica numa cidade simbólica, apenas as torturas (e os assassinatos) eram verdadeiras.”

Os dois amigos eram intelectuais ativistas, nesta altura, não alinhados ao Partido Comunista Francês; Camus como editor de “Le Combat”, o jornal da resistência e Sartre como o criador do veículo político e cultural mais importante da França, “Les Temps Modernes”.

Em “A idade da razão”, Sartre nos trás Mathieu que se sentia livre para agir, mas sua ação era inútil, na medida em que o homem cria paixões próprias sem sentido. O existencialismo sartreano, nessa medida, busca ultrapassar a oposição do realismo e do idealismo, afirmando a um tempo a soberania da consciência e a presença do mundo tal qual ele se dá a nós. A consciência é sempre consciência de algo que está fora dela mesma e nunca um mundo em si. “O existencialismo é um humanismo” onde a existência precede a essência, na medida em que os homens são autodeterminados, criando ao invés de receber sua própria identidade. Ou seja, somos totalmente responsáveis pelo que nos tornamos: “O homem não é mais do que aquilo que ele faz de si mesmo.” Logo, a liberdade é inseparável da existência humana.

A polarização da Guerra Fria e as publicações do ex, agora anti-comunista Arthur Koestler, “O zero e o infinito” e “O iogue e o comissário”, denunciando, seis anos antes de Khrushchev, os “expurgos, as execuções políticas e os gulags de Stalin”, foram fatores que, dentro da esquerda não alinhada, pressionavam por uma tomada de posição política.

Foi a perspectiva de alinhamento com os comunistas ou não que começou por afastar os dois amigos que  haviam trabalhado juntos por uma “terceira força de esquerda independente”. O fator vital de ruptura terminou sendo o posicionamento em relação ao Partido Comunista Francês e ao alinhamento com a União Soviética, por volta de 1950. E o afastamento entre ambos só fez aumentar até a morte de Camus num acidente automobilístico, em 1960.

De acordo com Lottan, “Sartre proclamou a sua aliança com os stalinistas a todo custo e Camus negou-se a se juntar aos radicais chiques…, por isso tendo sido ridicularizado e humilhado pelos sartrianos, e acontece que quase todo o mundo era sartriano na época.”

Com ponderação analisou R. Aronson, que realizou a melhor analise sobre a ruptura: “Considero que não se pode ver e viver a história como um teatro de moralidades, onde o bem luta contra o mal. Tal atitude nos impossibilitaria de ver e viver suas ambiguidades e tragédias”.

Nesse sentido, devemos buscar no conflito Sartre- Camus aspectos positivos relevantes, e , sem dúvida, a legitimidade de muitos dos posicionamentos políticos de cada um deles. Se Camus jamais foi um partidário do capitalismo, Sartre nunca foi um stalinista, muito pelo contrário. “Ambos possuíam estreitos compromissos com a liberdade, a democracia e a justiça social, e estes princípios os uniram mesmo na ruptura pessoal e política”.

Não podemos perder de perspectiva que, se o final do século XIX e o princípio do XX tiveram a decadência e a hecatombe da Primeira Guerra, eles também presentearam a humanidade com esperanças de mudanças, de revoluções. Já o final do século XX e os primórdios do XXI nos trouxeram o despedaçamento da esperança de avanço rumo ao socialismo, do empoderamento democrático e da própria liberdade.

Num certo sentido, a ruptura entre Sartre e Camus e o antagonismo ideológico que os separou foram marcas que tingiram toda a segunda metade do século passado, incluindo o pós-guerra, a guerra fria, o desmoronar da antiga União Soviética e o galope vitorioso do assim denominado neoliberalismo globalizante. De todos os modos, analisar o conflito Sartre- Camus é falar também sobre o fracasso da esquerda nos dias de hoje.

“Um romance nunca passa de uma filosofia posta em imagens. Num bom romance, filosofia e imagens se fundem” disse Camus. Sartre e Camus terminaram por insistir que havia apenas duas alternativas para a esquerda, refletidas em suas peças teatrais “O diabo e o bom Deus”, o revolucionário de Sartre e “Os justos”, ou o homem revoltado de Camus. (http://proust.net.br/blog/?p=297).

Sartre colocava a História acima dos indivíduos, desde o ponto de vista marxista de sua inevitabilidade.

Em 1952, a maioria da esquerda e da intelectualidade fechava com Sartre e em sua aproximação com o PCF. Mesmo concordando com a inadmissibilidade dos campos de trabalho forçado na URSS, mas sem esquecer do uso que deles faz a imprensa burguesa. “A cortina de ferro não é senão um espelho e cada uma das metades do mundo reflete a outra.” Para merecer o direito de influenciar os homens que lutam é preciso antes participar de seus combates, é preciso antes aceitar muitas coisas se quisermos tentar mudar algumas delas, dizia Sartre criticando o não engajamento de Camus.

O que Sartre não aborda neste então é a questão moral implícita em toda a controvérsia a respeito dos meios e dos fins da História: um sistema que engendra campos de trabalho forçados pode levar a algum fim positivo? Em que ponto a violência revolucionária pode se transformar numa arma de destruição e desumanização e não de emancipação?

Como contraposição ao fatalismo histórico do marxismo abraçado por Sartre, Camus assinala: “Nós, mesmo no melhor dos casos, vivemos sob limites, reconhecendo a dignidade das outras pessoas.” “O indivíduo para ser deve ao mesmo tempo, colaborar e resistir à História.” “Os humanos completamente absorvidos na História perdem sua liberdade.” O franco-argelino considera que a História nos aliena de nós próprios e de tudo o que nos seja mais vital.

O calcanhar de Aquiles de Sartre é claramente assinalado por Camus: “Onde está a base para a autodeterminação e para a liberdade uma vez que aceitemos que elas só ocorrem num contexto concreto?”

Embora ambos coincidissem na avaliação de que o fundamental seria reconciliarmos a liberdade individual com as necessidades coletivas, ou seja, reconciliar a liberdade e a justiça de tal modo que a vida possa a ser livre para o indivíduo e justa para todos, Sartre  propugnava pelo engajamento como a atitude política essencial, já Camus o essencial era preservar-se uma área extrínseca a qualquer situação histórica para a liberdade individual, a autonomia dos valores e para o julgamento moral.

Camus: “Se a arte deve julgar a si própria, a moralidade deve julgar a política e os indivíduos são livres para se engajarem ou não. O mundo é governado por pessoas e processos específicos e não por forças históricas”. Rejeita todo esquema de compreensão da realidade que não se baseie no homem, sua experiência e ações. “O absurdo é o humanismo corajoso, a necessidade de lutar, a disposição de enfrentar situações- limite, a recusa a todo escapismo, rejeitar gestos heroicos, rejeição de todo esquema de compensação não centrado na experiência e ações humanas”.

Enquanto Sartre defendia o alinhamento com o PCF e o Sindicalismo com ele associado como uma forma de realismo político, Camus questionava a “representação burocrática da classe operária” e neste sentido torpedeou os intelectuais que buscavam “dominar o mundo em nome da classe operária, sob a promessa da Justiça futura.”

O realismo na política trazia uma submissão a fatores exteriores à política: “O realismo destrói a própria ideia da humanidade, pois é uma submissão às coisas.” Camus buscava criar e fazer uso de um critério moral para o juízo político.

Para Camus a História é o lugar da “demesure”, do cinismo, da destruição e da servidão ilimitada, uma série indefinida de convulsões e uma prodigiosa agonia coletiva. “A História desvinculada da moral caminha para o niilismo.” “O existencialismo, partindo da liberdade humana, entra em contradição com a noção marxista da necessidade histórica e ao abraçar a mesma, alia-se ao stalinismo”.

Se Sartre denominava o ex- amigo de “um moralista pequeno-burguês” que assistia à História, Camus insistia na rejeição do realismo político, quer de direita, de esquerda ou de centro; insistia em aplicar princípios à política e o combate ao cinismo. “Quando se converte a História em Leviatã, as pessoas são convertidas em coisas, aqueles que representam a História adquirem direitos sobre elas a partir da negação de sua própria contingência”.

Disse Beauvoir: “Enquanto Sartre acreditava na verdade do socialismo, Camus, na verdade,  defendia cada vez mais resolutamente os valores burgueses e este é o seu ‘homem revoltado’. Sartre aproximava-se da U.R.S.S., Camus detestava-a e embora odiasse os Estados Unidos, na prática se alinhava a ele.” A versão de Beauvoir é tão parcial quanto a anterior de Lottan.

Camus via o comunismo como a “loucura moderna civilizatória”. Era a busca da justiça sem a liberdade. “Mesmo se a justiça não se realiza, a liberdade mantém o poder de protestar contra a injustiça e manter a comunicação aberta.” Acreditar na história como o faziam os comunistas era caminhar para o assassinato ou a falsidade. “O materialismo histórico é um tipo de determinismo absoluto, a negação de toda a liberdade. Fluir no comando da História é uma maldição”.

Escreveu em “O Combate”: “Marx amava os homens, os verdadeiros viventes. Os marxistas de hoje, perdidos na esclerose do dogma são responsáveis pela fraqueza racionalista de preferir a teoria à realidade. A divinização do homem abstrato, a conquista da totalidade e um messianismo sem Deus são inseparáveis da dominação, da servidão.”

Camus critica o cerne do existencialismo: “Para o existencialismo todo homem é responsável pelo que ele é. Mas será? E o pobre, o aleijado…”

Em resposta a “Os mandarins” de Beauvoir, Camus escreveu “A queda”, com seus juízes- penitentes, que lhe abriu as portas para o Prêmio Nobel de Literatura. Sartre referiu-se à “A queda” como a maior contribuição do ex- amigo. (http://proust.net.br/blog/?p=318)., mas sentiu o golpe.

A resposta não se fez esperar: “As palavras”, obra magistral semi  biográfica de Sartre, não perde nem em originalidade e nem em importância. Por sua vez, O Prêmio Nobel de Literatura também lhe foi oferecido.

Outro importante fator na ruptura Sartre- Camus foi o posicionamento intelectual em relação à prática ou não da violência política.

Sartre trata a violência como uma prova do tornar-se real, especialmente para as vítimas da opressão quando os demais caminhos estiverem bloqueados. “Jamais fomos mais livres que sob a ocupação alemã. Havíamos perdidos todos os nossos direitos, nos insultavam a cada dia… nos deportavam em massa por sermos judeus, trabalhadores, prisioneiros políticos; por todo lado encontrávamos este imundo e insípido rosto que nossos opressores queriam que acreditássemos que fosse o nosso: por tudo isso nós éramos livres. Cada pensamento justo era uma conquista, cada palavra se tornava preciosa como uma declaração de princípios. Como perseguidos cada um de nossos gestos tinha o peso de um engajamento. As circunstâncias muitas vezes atrozes de nosso combate nos impeliam a, enfim, viver sem imagem, sem véu, esta situação dilacerada, insustentável e que se chama condição humana.”

Camus, enquanto viveu, opôs-se tenazmente à violência do explorado num processo de libertação. Em oposição ao revolucionário, o homem revoltado.Seu grande livro “O homem revoltado” é um libelo contra a violência política. O homem revoltado é o homem que se revolta independentemente da autoridade, mas sem desejar a vitória querida pelo revolucionário. A contestação é o contraponto do poder. O propósito original da revolta é a afirmação da vida, autoafirmação da solidariedade. O impulso emancipatório das revoluções se converte em assassinato organizado e racional. “A rebelião nega a si própria ao se tornar revolução. O revolucionário é a um só tempo um revoltado ou deixa de ser revolucionário, mas sim, um burocrata ou policial que se volta contra a revolta. Se ele mantém-se revoltado, insurge-se contra a revolução, logo, todo revolucionário está destinado a tornar-se um opressor ou um herege, policial ou louco!”(http://proust.net.br/blog/?p=297).

“O homem revoltado” escreve Camus em material somente publicado após sua morte, “é um compromisso de esquerda e com os trabalhadores, para que a libertação dos mesmos não seja uma longa e desesperada ilusão. Opõe ao comunismo a felicidade de todos os dias, o lazer, a humanização do trabalho e a participação num grande e corajoso movimento democrático emancipatório.”

“Se a palavra ser de esquerda hoje não tem muito sentido é porque os intelectuais de esquerda escolheram serem demolidores da liberdade.” A revolução e a revolta são temas chave e um precisa do outro. “Sem a cultura e sem a liberdade relativa que ela pressupõe,  a sociedade, mesmo se perfeita, não é mais que uma selva. É por isso que toda criação é uma dádiva para o futuro.”

Para Sartre, o existencialismo como humanismo militante, preconizava que “não há como transformar um mundo violento e opressivo sem se tornar violento e opressor.” Para ele, a liberdade individual está intimamente ligada à liberdade coletiva e a violência aparece por si mesma como um valor. A eficácia da práxis defronta-se com a inutilidade da moral. A violência é tão legítima quanto necessária e inevitável. e visando o ex-amigo: “Um anticomunista é um cão.”

Já a violência para Camus não era uma virtude, mas o último recurso em resposta a uma ameaça vital. Camus via a democracia como o exercício da modéstia e manter-se fiel aos princípios e recusar-se a mentir em nome da política eram inseparáveis do respeito e amor às pessoas. Criticava os jovens revolucionários por se preocuparem com a justiça no abstrato, pouco se lixando pelo homem concreto, cultuando a violência e acreditando num futuro messiânico, odiando a vida, inclusive as suas próprias. “Por serem apocalípticos, dispunham-se a assassinar para dar fim aos assassinatos”. Para ele, “enquanto a revolta mata homens, a revolução mata homens e princípios.”

Camus enfatiza a vida como absurda e embora possamos nos rebelar, nada pode criar ordem ou impedir a morte. Logo, a vida deve ser vivida no mundo presente e sensível. A busca por justiça social aparece apenas como uma tentativa metafísica inspirada para substituir o reino da graça pelo da justiça. “Há crimes de paixão e há crimes de lógica. Estamos na época da premeditação e do crime perfeito.” A filosofia que pode servir para tudo até transforma assassinos em juízes, é “o assassinato racional” de “A queda”.

Ele era intransigente na defesa da livre expressão e dos direitos civis. A ética deveria estar sempre no cerne da política, em qualquer movimento por justiça social. “Toda liberdade humana é em sua essência relativa, pois a liberdade de qualquer pessoa limita a dos outros e a dos governantes.” Contra a filosofia da revolução de que poderia se reordenar tudo, uma filosofia dos limites, da ignorância calculada e do risco.

Em 1956, após o Vigésimo Congresso do Partido Comunista da U.R.S.S. e da invasão da Hungria pelas tropas do Pacto de Varsóvia, Sartre afasta-se do PCF e da União Soviética. Não mais considera o socialismo viável no curto prazo nos países desenvolvidos e denuncia o burocratismo dos  dirigentes sindicais ligados ao PCF, de certa forma reproduzindo o posicionamento de Camus anos atrás.“Somos aqueles que dizem os fins justificam os meios, acrescentando, porém esta indispensável correção: são os meios que definem os fins.”

Em 1957, Sartre classifica o PCF como “aparelho esclerosado que não mais consegue recrutar os jovens.” Recusa-se agora a tornar-se “realista” e busca ser um pilar da ira revolucionária em pró dos oprimidos. Sartre, desde então, permanecerá independente até a morte, em 1980.

Afirma que “o dever de todo intelectual é denunciar a injustiça em todos os lados”.

Em “Crítica da razão dialética (2)” Sartre questiona: “como uma revolução, a soviética, que se pretendia libertadora pode criar o inferno na Terra?” Desta forma aproxima-se novamente do julgamento realizado por Camus: a URSS era uma “autocracia totalitária, com capitalismo de Estado”. “Que direito possuía um país denominar-se socialista se um a cada dez cidadãos estava em campos de trabalho forçado?”

Durante a guerra colonial da Argélia Sartre dirá: “Perplexos os franceses descobrem uma evidência terrível: nada protege uma nação de si mesma, nem suas fidelidades, nem suas próprias leis, e bastam quinze anos para que a vítima se transforme em carrasco.” “Nous sommes toute des asassins”.

Perante os crimes de guerra na Argélia e no Vietnã, dirá:“A violência colonial não tem somente o objetivo de garantir o respeito desses homens subjugados: busca desumanizá-los! Nada deve ser poupado para liquidar suas tradições, para substituir a língua deles pela nossa, para destruir sua cultura sem dar-lhes a nossa; é preciso embrutecê-los pela fadiga. Desnutridos, enfermos, se ainda resistirem o medo concluirá seu trabalho.”

Sartre ainda prossegue: “Com efeito, nada, tão pouco as grandes feras ou os micróbios, podem ser mais terríveis para o homem do que uma espécie inteligente, carnívora, cruel, que soubesse compreender e frustrar a inteligência humana e cujo fim seria precisamente a destruição do homem! Essa espécie é a nossa, em meio à escassez.”

“O existencialismo continuaria a ser uma ideologia semi  autônoma dentro do marxismo e junto a ele”, diz Beauvoir. Mas Sartre retira seu foco da classe operária e o coloca nos países colonizados e do Terceiro Mundo. Uma mescla de marxismo com a moralidade o transformam no porta-voz pelos direitos à violência dos oprimidos. Após o Tribunal Internacional sobre os Crimes de Guerra, publica o livro “Sobre o genocídio”.

Sartre em seu panegírico a Camus, quando de sua morte prematura, afirmou: “Camus continuou a reafirmar no coração de nossa época, contra os maquiavélicos, contra o bezerro de ouro do realismo político, a existência do fato moral. Seu humanismo obstinado, estreito e puro, austero e sensual, lançou uma duvidosa batalha contra os eventos disformes e das massas em nossa época. Inversamente, pela insistência de suas recusas ele reafirma no coração de nossa era a existência do fato moral.”

E, finalmente, “Nós havíamos brigado, mas uma briga não é senão outra maneira de viver juntos e de não se perder de vista neste mundo pequeno que nos é dado.”

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