“120 dias de Sodoma”, sadismo, paranoia e fascismo!

“A lei deste mundo nada mais é que a lei da força e sua força motriz, a vontade de poder”. Cem anos antes de Nietzsche, do fundo de um calabouço, pontificou o Marquês de Sade!

A lei da força e a ganância pelo poder precisam sempre expandir territórios, dominar seres humanos, mesmo que seja necessário cercá-los de arames farpados e torres de observação, ou colocar fogo na natureza inexplorada. Por isto os nazifascistas criaram seus os campos de concentração e extermínio; os stalinistas, campos de trabalho forçados, os gulags.

No caso de Sade, ele criou um castelo no ar, de onde é impossível se escapar e lá, as sociedades do crime e do desejo funcionam de modo implacável!

Sade foi um homem condenado a viver mais de vinte e seis anos atrás das grades! Encarcerado, ele se revolta contra o mundo e, ao mesmo tempo, contra si mesmo! E estas revoltas absolutamente não chegam a ser contraditórias.

Negando o homem e sua moral, Sade o fará em nome do mais forte dos instintos, aquele que lhe resta estando encarcerado: o sexual!

Para Sade, a própria natureza torna-se sexo, que em sua lógica o conduz a um mundo sem lei, onde o único senhor será a energia desmedida do desejo. O sexo sádico, por um lado expressão da natureza, por outro, ímpeto cego, exige a posse total dos seres, mesmo ao preço de sua destruição.

Ele, na essência clama por liberdade, mas a liberdade que Sade reclama não é a do corpo ou do espírito, tão somente aquela dos instintos! Logo, aquele que só conheceu a lógica dos sentimentos, tratou de criar o sonho monstruoso de um perseguido. Uma sede extremada de uma vida proibida, somente aplacada de furor em furor, até transformar-se em um sonho paranoico de destruição universal.

Donatien Alphonse François de Sade, o Marquês de Sade, nasceu um aristocrata. Foi perseguido pela monarquia dos Bourbons, e mesmo tendo sido um correligionário dos revolucionários vitoriosos de 1789, foi por eles encarcerado. Posteriormente, após poucos meses em liberdade, o Imperador Napoleão repetiu a rotina de enjaulamentos consecutivos.

E os vinte e seis anos de prisão não lhe permitem possuir nenhuma atitude conciliadora para com os homens. Toda ética da solidão implica exercício de poder e o Marquês de Sade foi tratado de maneira atroz, tendo reagido de modo igualmente atroz.

A liberdade, enquanto sonho de um prisioneiro, não pode suportar limites; então, a liberdade passa pelo crime ou não é mais liberdade. Já a liberdade ilimitada do desejo significa a supressão da piedade e do outro.

Apesar de haver sido escritor e dramaturgo, e basear-se no materialismo do século das luzes e dos enciclopedistas, de modo algum Sade deseja ou chega a ser um amigo da raça humana. Odeia tudo o que se aproxime da filantropia. Quando nos fala em igualdade é sobre a abjeta igualdade das vítimas, pois a convivência entre os seres humanos não tem o bem-estar como objetivo, mas sim, a libertinagem.

Foi o manuscrito “120 dias de Sodoma”, que devolveu à cela o aristocrata, correligionário da revolução francesa, e em pleno jacobinismo. Afinal ele era um aliado altamente comprometedor!

“Saint-Fond” é seu personagem mais cruel; a inocente Justine deflorada, mil vezes estuprada, corre em fuga sob a tempestade e é esmagada por um raio, símbolo de o divino poder. Pois a ideia que Sade possui de Deus é de uma divindade criminosa, que esmaga o homem e o nega. Nesse sentido, por que o homem seria virtuoso?

“Virtude e vício, tudo se confunde no caixão”.

“A República Universal” foi para Sade um sonho, nunca uma tentação. Em política, sua verdadeira posição é o cinismo! No livro “Sociedade dos Amigos do Crime” ele se declara a favor do governo e de suas leis, enquanto se dispõe a violá-las. A licença para destruir pressupõe que se possa ser também destruído! Logo será preciso lutar e dominar.

A emancipação do homem para Sade se realiza na incorporação a uma burocracia do vício, que regulamenta a vida e a morte dos homens e mulheres, que entraram para o reino da necessidade: “Vocês já estão mortos para o mundo”. Na “República de Sade” tudo são máquinas e mecânicos, sua dinâmica ele as copia dos conventos, mas ao seu contrário: “tudo o que representar uma conduta pura será culpado.”

Aqui se prenuncia como nunca dantes “A Colônia Penal”, que será escrita por Franz Kafka, dois séculos após.

De destruição em destruição, só resta o aniquilamento universal. Mas quando os outros são aniquilados, os carrascos se veem um diante do outro no castelo solitário.

Para Sade, matar um homem no paroxismo de uma paixão é compreensível e louvável. Já mandar que outra pessoa o faça, sob qualquer pretexto, é barbaridade. Para Sade, quem mata deve pagar com a vida, nisto sendo superior a muitos policiais militares, milicianos e matadores de aluguel que se espalham pelo nosso Brasil do século XXI.

Tal e qual o paranoico no poder no nosso Poder Central, Sade diz: “Eu abomino a natureza, gostaria de parar os astros, destruir o que lhes serve salvar o que é nocivo, mas não consigo”.

Mas, frisemos, Sade nunca destruiu nenhuma floresta, tão pouco matou ninguém, isto só se passou na imaginação e ele morreu atado numa camisa de força, pesando mais que cento e vinte quilos, em meio aos excrementos de um hospício. Acompanharam-no na última senda sua segunda mulher e uma amante de quatorze anos. E neste sentido, Sade foi o homem de letras perfeito, aquele que construiu uma ficção para dar a si mesmo a ilusão de existir. Colocou acima de tudo “um crime moral, que se comete por escrito”.

E evidenciou as consequências extremas de uma lógica revoltada, pelo menos quando ela se esquece de suas verdadeiras origens. Nas totalidades fechadas o crime universal, a aristocracia do cinismo e a vontade do apocalipse sempre predominam.

“120 dias de Sodoma” foi escrita por Sade no espaço de trinta e sete dias em 1785, quando estava preso pela primeira vez, na Bastilha. Tendo pouco material e temendo que o livro fosse confiscado, ele o escreveu numa letra minúscula em um rolo contínuo de papel com doze metros de comprimento. Quando a Bastilha foi atacada e saqueada em 14 de Julho de 1789, durante o início da Revolução Francesa, Sade pensou que o trabalho estaria perdido para sempre e chegou a escrever que “chorou lágrimas de sangue” por sua perda.

Porém, o longo rolo de papel onde o texto estava, foi posteriormente encontrado escondido em sua cela, tendo escapado da atenção dos saqueadores e do fogo.

Foi vendido ao marquês de Villeneuve, cuja família o conservou durante três gerações.

No final do século XIX, o manuscrito foi arrematado por um psiquiatra de Berlim, Iwan Bloch, que o publicou em 1904, numa versão própria.

Em 1929, Charles e Marie-Laure de Noailles, ela descendente do Marquês de Sade pelo lado materno, adquirem o manuscrito e publicam-no numa edição limitada aos “bibliófilos subscritores” para evitar a censura.

Somente na segunda metade do século XX é que o texto se tornou disponível em edições em inglês e francês.

O livro de Sade inspirou “Saló ou os 120 dias de Sodoma” na fantástica versão cinematográfica de 1975, dirigida por Pier Paolo Pasolini, adaptada para o outono europeu de 1944, na Itália fascista de Mussolini. A obra, tida como uma das mais perturbadoras da história do cinema é dividida em três fases chamadas “círculos”: o das Manias, em que os fascistas satisfazem seus desejos sexuais; o das Fezes, repleto de escatologia, em que os jovens são obrigados a ingerir fezes; e do Sangue, em que os prisioneiros desobedientes são punidos através de mutilações, torturas e assassinatos.

O Simbolismo cinematográfico é extasiante: afinal, o que buscam os intolerantes e os fascistas em todas as sociedades? Submeter e transformar os homens em escravos e em seus próprios carrascos. A isto os conduz a ânsia de poder!

O sucesso das predições de Sade se explicam em nosso tempo: a reivindicação da liberdade total para os poderosos, e a desumanização friamente executada pela inteligência, com a fria utilização da inteligência e comunicação artificial.

É quando a redução do homem transforma-se em objeto de experimento, o campo do saber questionador se fecha e os donos do poder do poder se encarregarão de organizar uma nova era da humanidade: a era dos escravos!

Nisto, nosso país avança sob a liderança de um paranoico que se apoia em bispos- milicianos, em militares parasitas e numa plutocracia escravocrata!

Seria justo acusarmos apenas de “sádico” um pretenso discípulo do Marquês de Sade, àquele que tortura, estupra e mata, ou que destas atitudes hediondas seja um propagador? Que assiste impávido e estimula o comportamento antissocial durante uma epidemia que já ceifou muito mais de 125 mil vítimas? E quando estas atitudes não são decorrentes de um impulso sexual pervertido simplesmente, mas pela ânsia pelo poder e por dinheiro? Não seria adequado qualificar seu sadismo como uma das manifestações de uma personalidade paranoica homicida?

Afinal, “120 dias de Sodoma”, escrito ao final do século XVII, chega a nós, no século XXI, como um terrível grito de alerta!

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