“A liberdade é feminina e é ela quem conduz o povo”.

Marie Deschamps, uma mulher do povo, é o nome da modelo que Eugène Delacroix escolheu para retratar o clima dos embates da Revolução de Julho de 1830, a revolta popular que derrubou o Carlos X e a Restauração, imposta à França após a derrota de Napoleão Bonaparte, sob a batuta do obscurantismo do czar russo Alexandre I e da Igreja Católica.

Havia quase dezesseis anos que todos os direitos cidadãos e algumas conquistas sociais, ainda frutos da Grande Revolução de 1789, tinham sido abolidos. Tal qual nos dias de hoje, em que o Chile tido como um “oásis de paz” na América Latina explodiu “em guerra”, também o povo sufocado pela monarquia vivia “um oásis de paz”, mas foi para as ruas em julho de 1830, ergueu barricadas, enfrentou a violência e a morte e derrubou o monarca Bourbon.

Em uma carta endereçada ao irmão, o pintor Delacroix escreveu: “O meu mau humor está desaparecendo graças ao trabalho duro. Embarquei em um tema moderno- uma barricada, pois se eu ainda não lutei pela liberdade em meu país, pelo menos vou pintar para ela. E, para mim, a liberdade é feminina e é ela quem conduz o povo.”

Nasceria desse esforço uma pintura imortal, símbolo da modernidade: “A Liberdade conduzindo o Povo”.

O trabalho de Delacroix foi tão intenso, humano, generoso quanto o é Marie, seu modelo, a mulher forte de seios fartos e desnudos, que caminha pela tela com os passos largos e confiantes, reproduzindo a vibração com que a contagia o clamor do povo em revolta, em luta de vida ou morte contra os opressores.

“A Liberdade conduzindo o Povo”, quase dois séculos após, sua visualização ainda nos inspira, apaixona-nos, é capaz mesmo de provocar a sensação de um renovado romantismo, do sentir-se recompensado e orgulhoso pelos melhores momentos que a humanidade já produziu e que, para o pesar dos opressores, seguirá produzindo.

Balzac, em seu tempo, também foi um apaixonado pela figura de Marie, deleitou-se com seu esplendor de camponesa, a pele morena curtida pelo trabalho e pelo sol, tão ardente e verdadeira quanto a imagem dos franceses que lutam e caem ao seu passar. Apaixonou-se pelo orgulho e até mesmo a insolência da sua independência, “um contraponto perfeito às mulheres burguesas que se prestam à dominação do macho”.

Deschamps é filha da tomada da Bastilha, é o povo que, depois da Revolução de 1789, seguiu as aventuras imperialistas de Napoleão Bonaparte; foi derrotado e submetido às forças da reação, mas agora retornava à luta para vencer na Revolução de Julho de 1930. Por tudo isso, Marie é bela, nua, ardente, sua faixa tricolor simboliza a liberdade que a conduz. Marie é uma mulher do povo, emancipada sexualmente.

Ela escolhe seus amantes dentre aqueles homens que lhe despertam a paixão, dando, conforme Barbier “seu corpo forte àqueles homens tão fortes quanto ela mesma e que desejem mudar o mundo”, como ela mesma o quer torná-lo melhor.

O barrete frígio ao vento, que lhe encobre parcialmente os cabelos, tem um sentido: os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, aqueles mesmos de 1789, que ainda não morreram e jamais perecerão.

Marie é a minha, é a tua, é a nossa companheira de luta, aquela que sempre nos acompanhou e que tantas e tantas vezes nos conduziu.

“A Liberdade guiando o Povo” após ser exposta no Salão de 1831, teve que procurar abrigo na clandestinidade, porque novamente os reacionários retomaram as rédeas do poder e a monarquia dita constitucional de Luís Felipe, imposta ao povo ao final dos conflitos igualmente a temia. A pintura procurou abrigo em porões, como tantos de seus filhos do século XIX e XX, e somente pôde refletir a luz da aurora dezesseis anos após, em 1848, quando o bravo povo francês retornou à luta nas barricadas.

Vitorioso, o parisiense realiza uma nova Revolução e instaura a Segunda República. No mesmo ano de 1848, Flaubert, em sua “Educação Sentimental”, retorna à cena magnífica e compara a imagem da Liberdade àquela das “mulheres livres e comuns” que percorriam as Tulherias, saqueadas na nova revolta. Por isso Flaubert denomina Marie Dechamps de “A Estátua da Liberdade”.

Desde esse momento, nem mesmo Napolão III com seu Império (1851/ 1870), que pôs fim à Segunda República, teria coragem de recolher o símbolo da luta contra a opressão. Em 1874, com a Terceira República, “A Liberdade guiando o Povo” entra definitivamente para a coleção do Museu do Louvre.

No dizer de Hobesbawm, a novidade histórica da “Liberdade guiando o Povo” reside na identificação da figura feminina nua com uma mulher do povo real, de carne e osso, que desempenha a liderança no movimento dos homens em busca da liberdade. Uma mulher, cujos seios apontam para o futuro, simboliza a força concentrada do povo, um conjunto de classes sociais e profissões diferentes. Representa um ponto de ruptura em que sua imagem é aceita pelos homens como a de líder.

“Na alegoria de Delacroix a mulher não somente inspira os homens ou representa, Ela AGE”.

Em 1848, o pintor Millet, inspirado na imagem de Marie Deschamps tornou a retratar a Liberdade, agora uma mulher toda nua, apenas com o barrete frígio da Primeira República, conduzindo o povo.

Na Comuna de Paris, em 1871, as mulheres das barricadas, que combatem e morrem lado a lado com seus homens, ainda são retratadas como líderes, mas agora seus seios são recobertos. A estátua de “A República” de Dalou , exposta ainda hoje na Place de la Nation, possui os seios exuberantes, mas eles não estão mais nus.

Chegamos ao século XX e nos defrontamos com os movimentos sociais e políticos, que restauram, de certa forma, um puritanismo e um machismo pré- Delacroix. O papel da figura feminina nua é reduzido e mesmo abolido nas alegorias artísticas dos movimentos proletários e socialistas. Ocorre uma masculinização nas imagens do socialismo real e do movimento operário. Os nus, quando ocorrem, são quase sempre de operários representados com o torso descamisado, a esbanjarem força e exuberância. Já as figuras femininas encarnam os sentimentos de sofrer, de luta e persistência, seus corpos tornam-se invisíveis sob os xales e os lenços de cabeça.

Se o feminino tão desnudado no século passado somente volta a adquirir expressão após a geração de 1968, nos dias de hoje, nas diversas lutas de libertação do século XXI, as Marie Deschamps retornaram com os seios nus ou encobertos, a apontar os caminhos da “revolta que liberta”, a liderar os povos no caminho do renascimento e da humanização.

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