As religiões apocalípticas e a negação do Nazareno.

(A Bíblia, o resgate necessário, parte 4, final).

O “Apocalipse” foi o último livro a ser incorporado ao “Novo Testamento”, pese à resistência contrária da parcela oriental da cristandade.

Foi escrito quase um século após a morte do Nazareno na cruz. Sua autoria é atribuída a certo João (que nada tem a ver com outro João, o Evangelista, discípulo de Cristo), que havia sido banido de Roma para a ilha de Patmos. O termo apocalipse, que significa “revelação”, foi auto- outorgado pelo próprio autor.

Enquanto o “Evangelho” escrito pelos quatro apóstolos que conviveram com Cristo, nos traz mensagens de amor humano, espiritual e fraterno, suave, romântico e bastante culto, “Apocalipse”, além de incorporar tanto antigos símbolos pagãos quanto judaicos do Livro de Daniel, tem o sentido da turba, sendo popularesco e inculto, repleto do rancor selvagem e da violência. Sua essência concentra-se no ressentimento, na sede de vingança, nos sentimentos destrutivos tanto da vida quanto do cosmo, numa ambição de poder inconfessável.

Acontece que são o “Apocalipse” e parcelas do Antigo Testamento, especialmente livros como os de Josué, onde são reportadas a arrogância tribal e a crueldade cometida com prazer, e não os relatos dos Quatro Apóstolos que formataram historicamente, tanto as bases da Igreja Católica inquisitorial e tradicional, quanto, atualmente, as das principais correntes do evangelismo Neopentecostal.

Enquanto Jesus Nazareno e os evangelhos de Mateus, João, Marcos e Lucas inventaram uma religião de amor, uma maneira de viver fraterna, suave, amorosa, bastante culta, “O Apocalipse” elaborou uma religião do poder, que se baseia numa maneira terrível de julgar e punir os diferentes.

Ao invés do amor sublime e da aceitação dos diferentes pelo Nazareno, uma maneira terrível de julgar e condenar.

Na verdade, “Apocalipse” é o livro dos fracassados como seres humanos, daqueles que se consideram zumbis na sociedade e por isso mesmo expressam seu ressentimento com o sentido da vingança, do ódio e do Poder, mesmo que seja o do outro mundo!

Cristo é doce, amoroso, uma espécie de Buda que buscava livrar seu povo do poder dos sacerdotes dos Templos Judaicos, sacerdotes que dominavam a turba com a proliferação do sentimento da culpa, da punição, da vergonha, dos preconceitos, dos julgamentos e da morte.

Nietzsche, assim como Spinoza, fazia questão de jamais confundir Cristo, o homem que trouxe a boa nova, ou seja, o Evangelismo, com o cristianismo. Para ele, o “cristianismo” teve por fundador não Cristo, mas o Apóstolo Paulo, que o filósofo alemão denomina apropriadamente de o “Anticristo”, um policial convertido mais de trinta anos após a morte do Crucificado.

O empreendimento de Cristo é individual; se o indivíduo e a coletividade se compõem em cada um de nós como partes distintas e intercambiáveis da mesma alma, para Cristo interessava “desfazer o sistema coletivo do sacerdócio do antigo testamento, do sacerdote que encarnava o Poder, libertando a alma individual daquela verdadeira gangue que a aprisionava”, constata D.H. Lawrence.

Jesus pensava que bastaria uma cultura da alma individual para expulsar os demônios contidos na alma coletiva da comunidade, agrupada pelos sacerdotes vendedores da entrada nos céus. Falhou.

Na realidade, “Apocalipse” faz valer a reivindicação de milhões de pobres e dos fracos de espírito, os humildes e os infelizes, esses que somente possuem uma alma coletiva, que se submetem a serem conduzidos como ovelha em rebanho, já que se exilaram de si mesmos. Na mistificação de João de Patmos, Cristo retorna da morte não mais o nobre Cordeiro Sacrificado, mas como um Cordeiro de Chifres que ruge como um leão, cruel e aterrorizante, o pior dos carrascos de toda a literatura. O narrador diz que ele é o cordeiro imolado, mas o que vemos é um cordeiro assassino que volta para matar e dizimar a humanidade aos milhões.

A doçura da língua do Nazareno retorna à terra no Juízo Final na forma de uma espada de gomo duplo, que queima, mata, condena para todo o sempre.

E, na junção de “O Apocalipse” com Apóstolo Paulo, o cristianismo se trona em uma espécie de Anticristo, pois violenta Cristo, transformando-o num cordeiro com pele de leão, com dentes de sabre, que aglutina os homens em alma coletiva! Promete-lhes o Poder, mas não qualquer poder, mas um Poder absoluto que se insere por cada palmo de terra, permeia despoticamente toda a alma humana que com ele se identifica.

No Apocalipse temos, então, o surgimento da vontade de destruir, vontade de ser sempre a última palavra. E o Poder passa a existir como uma longa política de vingança, o longo empreendimento de narcisismo de uma alma coletiva, nas palavras de Deleuze. Desforra e autoglorificação dos fracos clamava Nietzsche, conduzida por parte do clero e pelos pastores.

E isto tudo porque João de Patmos enxerta um eu monstruoso em Cristo. Sempre títulos de Força, jamais de amor, compaixão! Cristo retorna ao mundo como um conquistador todo poderoso, um messias da destruição, destruidor de homens que desafiem as vontades da coletividade imbecilizada. O Cristo salvador, benevolente, jamais! Agora, após um século de sua morte, é anunciado seu retorno em quarenta anos, o Cordeiro da vingança e dos julgamentos!

Logo, “Apocalipse” é ao mesmo tempo tanto um grande espetáculo, quanto o sonho grandioso de um monstro esquizofrênico: a grande e a pequena morte, as sete trombetas, os sete selos, as sete taças, a primeira ressureição, o juízo final! Todos os detalhes dos flagelos e das infelicidades reservadas aos inimigos, ao mesmo tempo da necessidade dos eleitos se medirem com o desespero dos desgraçados numa cidade celestial, a “Nova Jerusalém”, que cairá dos céus, substituindo a naufragada e destruída Babilônia.

“Ódio flamejante e ignóbil desejo de fim do mundo”, proclama o “Apocalipse”. A nós, os mortais, resta apenas preencher um tempo monstruoso, que se estende entre a Morte e o Fim, a Morte e a Eternidade. Uma longa ironia, pois para Cristo a eternidade era experimentada primeiramente em vida, “sentindo-se no céu”, por amor a si próprio, ao Pai e ao próximo!

Um teatro de fantasmas substitui o dos Profetas dos Velhos Testamentos. Fantasmas e mais fantasmas, expressão do instinto de vingança, arma da vingança dos fracos de espírito, dos fracassados na vida!

“João conhecia muito mal e muito pouco Jesus e os Evangelhos, mas parece que sabia muita coisa a respeito do valor pagão dos símbolos, em contraposição ao seu valor judaico ou cristão.” (D.H. Lawrence).

Acontece que esses homens do ressentimento e que esperam sua vingança, gozam de uma dureza que lhes vem de sua incultura profunda, e a partir dela extraem tudo o que sabem de um único livro, de determinadas citações da Bíblia e, notadamente, do “Apocalipse”.

Tornam-se manadas guiadas por homens sempre rudes e absolutamente gananciosos, dotados de um “sentido especial do Poder bruto e selvagem”.

No seu tempo, o inimigo de João de Patmos é Roma e sua civilização, com toda a influência da cultura grega. Diz Lawrence que, para “assegurar a queda e a destruição do Império Romano, que ele denomina Babilônia, João decidiu ressuscitar o Cosmo inteiro, e para isto deseja a destruição de tudo o que seja humano para assentar seu poder último, numa cidade celestial, a Nova Jerusalém”.

Para isso, denomina os frutos civilizatórios de Babilônia de pecados mortais, não importa que aquela abrigue gente humilde ou importante, pobres ou ricos. E o justo passa a ser sua destruição e a vontade de destruir e aniquilar chama-se para ele, Justiça e Santidade.

E considerar como INIMIGO a ser destruído todo aquele que não esteja em conformidade com a ordem de seu Deus, um Ser superior vingativo, o mesmo Javé que Moisés descobrira no deserto! Com o retorno do Crucificado Apocalítico salvar-se-ão apenas aqueles marcados com o símbolo divino, um total fixo de 144.000 eleitos. Para os outros milhões, para todos os demais o fogo, o enxofre, a morte primeira, a segunda, a definitiva e com muita dor e sofrer!

São enormes as semelhanças entre a “Nova Jerusalém” e o futuro que os ressentidos da Terra nos propõem, na forma de uma planificação militar-industrial de um Estado autocrático e absoluto. “O Apocalipse, salienta Deleuze, não se encontra nas catástrofes anunciadas, mas na autoglorificação programada, e na instituição da glória da “Nova Jerusalém”, e, com esta, a emergência de um Poder demencial último, judicial e moral.”

O terror arquitetônico desta Jerusalém impedirá que nela penetre qualquer contágio sobrevivente da negação, da revolta, do livre pensar, mas tão somente as almas abestadas e inscritas no livro do Cordeiro vingador! Palavras como MISTÉRIO, A GRANDE BABILÔNIA, A MÃE DAS PROSTITUTAS E ABOMINAÇÕES DA TERRA, escritas todas em letras maiúsculas empolgam os mistificadores da fé religiosa autêntica.

“A Babilônia se converteu em habitação de demônios, em retiro de espíritos imundos, em guarita de ave hedionda e abominável”. Nada mais anticristão que esta exortação, mil vezes repetida nos dias de hoje por Edir Macedo e seus acólitos.

De tal maneira que o “Apocalipse” revela, psicologicamente, o seu objetivo próprio: desconectarmo-nos do mundo e de nós mesmos. Por isso, ele é primo-irmão do Eterno Fascismo, descrito por Umberto Eco.

Paul Virilio também destaca duas outras características deste Estado futuro: “a destruição de um meio ambiente habitável em proveito de um ambiente estéril e mortífero”.

E “Apocalipse” ainda faz mais: transforma todas as potencias angelicais em terríveis policiais. A mulher, então, sofre um destino ainda pior: é transformada ou em mulher-polícia ou em prostituta a ser destruída.

Pobre Cristo! Havia inventado genialmente uma religião do amor! Paulo de Tarso e “O Apocalipse” inventaram uma religião do Poder. Embutiram em Cristo uma alma coletiva e o degeneraram. E daí advém a transmutação do sentimento de amor para o ódio, da vingança, e ao Crucificado não é permitido permanecer ao lado do Pai como desejava até mesmo na Cruz, mas retorna vingador e sua língua, antes tão doce e pura, transmuta-se em uma espada de gume duplo. Morte, morte, esta é a única sentença!

Eis aí o conflito entre certo “cristianismo militante”, hoje claramente expresso pela maior parte das seitas ditas Neopentecostais e pelo catolicismo esclerosado. Aqueles da intolerância, da incultura, das mortes, da vingança e dos preconceitos.

Por outro lado o cristianismo e, mesmo, o agnosticismo do Cristo pacifista, tão bem encarnado na figura luminosa do Papa Francisco!

E é, principalmente contra os apóstatas do Sagrado, do bem, da humanidade e dos valores civilizatórios que necessitamos preparar uma ação de verdadeira guerra: o resgate civilizatório do Velho e do Novo Testamento, em tudo os que eles possuem de elevação, de valores civilizatórios e humanísticos!

Não deixemos aos “vendilhões do templo” a exclusividade do uso daquilo que eles jamais mereceram!

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