“Vitória” uma obra prima do romance psicológico. J. Conrad.

“Clarividência ou não, os homens amam seu cativeiro. À conhecida força da negação eles preferem o leito miseravelmente desfeito de sua servidão”.

O horror do imperialismo destrói o mundo exclusivamente pela ganância imediata, sem nada construir. Os agentes coloniais são todos transformados em robôs que escravizam as povoações nativas pelo medo, pelo terrorismo e pela fome e que, ao final, são pessoas ocas, “que um dedo pode penetrar”.

“As trevas verdadeiras são aquelas dos que perderam o coração, nestes peitos se encontram somente interesses”.

Joseph Conrad (1857- 1924) foi um escritor britânico de origem polaca. Viveu no mar a juventude e parte da maturidade e, por isso, muitas de suas obras são centradas em marinheiros e aclimatadas no mar ou nos grandes rios. Em 1890, no comando do navio “SS Roi de Belges”, participou da exploração colonial da bacia do Rio Congo.

Dez anos depois, a experiência pessoal de Conrad serve de base para “O Coração das Trevas”, um berro contra a exploração colonial, o escravagismo, o racismo e o genocídio.

E todo o empenho literário de Conrad teve esse direcionamento. O livro, publicado em 1902, instiga pelos temas que aborda, pelas circunstâncias históricas e sociais que ilumina e, sobretudo, pelo nível de barbárie que pode ser cometida pelas nações e pelas pessoas ditas “civilizadas”, quando guiadas pelas ambições políticas e comerciais.

“Vitória”, ouA arte é a verdade que emociona”, comentou o poeta Ferreira Gullar.

“Vitória” é, sem dúvida, uma obra-prima do romance psicológico. A história, embora contada em tom comedido, sem alarde, requer certa analise literária para que se possa desfrutar de toda a extensão de um trabalho impecável, ao qual Jack London se refere como “um dos porquês de se estar vivo para ler”.

Publicado em 1915, Vitória nada tem a ver com a tragédia da guerra que devastava a Europa. A Vitória aqui é do espírito, de Alma em sua luta contra a morte.

Axel Heyst é um europeu, irresoluto e sonhador, desiludido com a perspectiva de inserção num mundo ao qual despreza, e despreza somente por ter adquirido o hábito de pensar.

“ O pensamento é o grande inimigo da perfeição. O hábito da profunda reflexão é o mais pernicioso de todos os hábitos contraídos pelo homem civilizado… A utilidade da razão é justificar os desejos obscuros que movem nossas condutas, impulsos, paixões, preconceitos e loucuras, e também nossos temores. ”

Heyst é incapaz de uma maldade preconcebida, estando sempre pronto a gestos de autêntica solidariedade, na medida em que estes não acarretem envolvimento e muito menos recompensas materiais.

Conrad formata o sueco Heyst nos mesmos moldes com que Dostoievski criara o Príncipe Michkin de “O Idiota”, mas já dentro da perspectiva da complexidade do homem moderno.

Após o falecimento de seu pai, um filósofo, Hyest deixa a Europa e se transforma num pária sem rumo e sem lar fixo, vagando pelos mares do sul da Ásia. Escrevera o pai de Hyest: “Clarividência ou não, os homens amam seu cativeiro. À conhecida força da negação eles preferem o leito miseravelmente desfeito de sua servidão”.

Heyst, primeiramente conhecido como “O Encantado”, é um sujeito para quem nada mais havia a conhecer além de “fatos”. O andarilho somente buscará fixação por insistência do amigo Morrison, para “não o desgostar”, quando assume responsabilidade pela exploração de carvão mineral para uma insignificante empresa de Londres. No dizer de seu patrão de tão curta permanência, ele era um “cavalheiro perfeito, mas um tanto utópico”.

Será após o previsível fracasso do empreendimento comercial que Heyst se voltará para os livros e mobiliários que herdara do pai, excluindo-se do mundo dos homens numa ilha-vulcão no mar de Java, Surabaia.

Dizia para Davidson, um navegante que raramente o visitava: “A natureza humana é como é, com seu lado tolo e mesquinho”. “Eu não quero mais nada com ele! Jamais moverei um dedo de novo. Houve uma época em que pensava que a observação inteligente dos fatos era o meio de iludir o tempo que nos é concedido, mas agora, acabei com a observação também. ”

“O mundo é um cão azedo. Ele lhe morderá se o senhor lhe der uma chance; mas creio que aqui (na ilha), poderemos desafiar os fados com segurança. ”

Não era um ermitão, mas tentara exilar de si o mundo. A vida, entretanto, prepararia uma nova cilada para tornar a enreda-lo.

Certa vez, em uma de suas poucas escapadas, numa hospedaria ele conhece Alma, o nome pelo qual era tratada Magdalena, uma pobre e explorada violinista inglesa, acorrentada a um grupo mambembe de músicos viajantes. Alma vive o desespero de um mundo que a violenta e a oprime.

Tal qual fizera antes com Morrison, Hyest se deixa atrair por Alma e a ampara, raptando-a e dando-lhe refúgio na distante Surabaia.

“Havia naquele rosto algo indefinivelmente audacioso e infinitamente infeliz”.

O espírito de Heyst é atraído pelo desespero da jovem e impelido a protegê-la por compaixão, embora a beleza jovem e espontânea também cumpra seu papel de atração. Retornando ao “O Idiota”, temos a figura de Nastasia Filipovna a se delinear até o sacrifício.

“O Encantado” mantinha pelo mundo total desencanto. Antes, na solidão e no silêncio, costumava pensar claramente, vendo a vida além da lisonjeira ótica da esperança, das convencionais auto ilusões, da sempre esperada felicidade. Mas, agora, perturbava-se, pois, Magdalena despertava nele uma ternura ainda indistinta e confusa, mas prazerosa, complementar.

Lena, por seu lado, se entrega na esperança de esquecer tudo o que ficara para trás, todo o terror, todo o desespero.

“Sem sentimento de culpa, por um desejo de segurança e por uma profunda necessidade de depositar sua confiança onde seu instinto de mulher orientava-a”.

Hyest dera à sua vida um sabor, um movimento, uma promessa mesclada de ameaças que ela não desconfiava que pudesse um dia encontrar; ela era nada mais que uma moça casada com a miséria. Sua alma naufragada tinha que se agarrar a ele.

Shomberg, o antigo explorador de Magdalena, espalha rumores sobre Heyst, insinuando um possível dinheiro escondido na ilha, o que, afinal, guiará até ela três ladrões e facínoras.

“O poder da calunia aumenta com o tempo. É insidioso e penetrante. Pode mesmo destruir a fé de uma pessoa em si mesma… apodrecer a alma”.

Os três são desesperados em busca de dinheiro fácil. Como uma comunhão de renegados eles se organizaram. Jones é um pseudo cavalheiro inglês de estranha espécie, que devotava supremo ódio e desprezo a todas as mulheres. Martim Ricardo tinha a agressividade de uma fera, que olhava todas “as criaturas domesticadas da Terra” como potenciais vítimas naturais. Violentar ou matar era tudo a mesma coisa para ele, contanto que o ato liberasse a alma sofredora daquela selvageria por tanto tempo reprimida. Era o único do trio que conhecia a existência de uma mulher na ilha. O terceiro do trio era um bruto, simplesmente.

O mundo do qual Hyest e Magdalena julgavam desconectar-se, voltara até eles numa forma de absoluta violência.

Martim Ricardo tenta submeter fisicamente Lena que lhe resiste com uma impossível força, num momento em que não era mais apenas o ser humano que contava. Ela não se defendia por si mesma apenas, mas pela fé que nascera nela, a fé no homem de seu destino e talvez nos céus que o havia feito cruzar seu caminho.

Além da força ela usara a duplicidade. “Duplicidade- refúgio dos fracos e dos covardes, mas dos desarmados também! Só a duplicidade separava o encantado sonho de sua existência de uma cruel catástrofe. Parecia-lhe que o homem sentado a sua frente era uma presença inevitável, que acompanhara toda a sua vida. Era o mal do mundo corporificado e por isso não se envergonhava de sua duplicidade”.

O Sr. Jones dirá a Hyest: “Sou uma espécie de destino, o castigo que espera a oportunidade…” O sueco desarmado sabia que um bandido insano é uma combinação mortal!

Ao saber que havia uma mulher na ilha, Jones advinha que Martim deveria querer se mancomunar com ela e destrui-lo, além do sueco. Ao tentar baleá-lo, acerta um tiro em Magdalena.

Mas a vitória será de Lena, que consegue capturar a morte- a morte súbita, irresponsável, selvagem, que rondava o homem que a possuía. Ela termina por salvar a vida de Hyest. Ferida, nos braços de Hyest, enquanto os bandidos se auto aniquilam, o espirito da moça apegava-se ao seu triunfo, convencida da realidade de sua vitória sobre a morte.

Hyest mesmo nesse momento mantinha seu verdadeiro grito de amor longe dos lábios, em sua infernal desconfiança sobre a vida. Confessa ao amigo Davidson, que chega tarde em seu socorro– “Infeliz do homem cujo coração não aprendeu quando jovem a ter esperanças, a amar, e a confiar na vida! ”

Ao final, a vida nada tinha mais a oferecer-lhe. Com sua Lena morta nos braços, suicida-se.

As primeiras análises realizadas sobre “Vitória” apontaram um tom melodramático na história, mas, na realidade, o melodrama em Conrad é consequência da descida ao abandono de cada um de nós.

Já os locais exóticos são típicos dos romances de Conrad, onde a natureza de alguma forma determina a personalidade do personagem.

Uma ilha é, obviamente, o sinônimo de solidão, mistério, de afastamento. Reflete muito bem a solidão de almas que Conrad procura retratar, perfilando-as ao meio ambiente onde habitam.

O mar permanece como um obstáculo, uma barreira quase que impenetrável, embora único caminho para relacionamento com outros seres.

Como na própria vida, as relações entre os homens são sempre perigosas na ausência de amizade, do amor. Ou seja, para estabelecer esses laços é necessário atravessar o mar que separa um dos outros, enfrentando os perigos que a viagem implica.

“Vitória”, verdadeira obra de arte, não é uma espécie de combinação de temas de ressonância que sensibilize o leitor. E a marca do amor como pano de fundo, um paraíso perdido por causa do mal, do mal que surge a partir da inveja e se intromete em outras vidas, negligenciando a sua própria. Algo que acontece todos os dias em nossa sociedade.

“Vitória”, enfim, é a vitória da Alma, de Magdalena, da vida que se entrega à morte pela Vida.

O romance foi adaptado para o cinema por diversas vezes. Uma primeira versão foi no cinema mudo em 1919 dirigida por Maurice Tourneur; uma segunda, em 1930 quando William Wellman dirigiu “O Paraíso Perigoso”; em 1940, terceira versão dirigida por John Cromwell; e, finalmente, a última, de 1995 por Mark Peploe.

Em 1924, ano de sua morte, o autor “por coerência”, recusou-se a aceitar o grau de “Cavaleiro do Império Britânico”, numa forma clara de protesto contra as políticas colonialistas imperiais.

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