Um homem feliz, segundo Sólon, o legislador ateniense.

O risco da morte é a própria aventura humana. Sem este risco tudo seria fácil demais, portanto inútil, logo, impossível. Como diria em outras palavras Sólon, ninguém sabe qual será a face de sua morte. Portanto, jamais poderemos considerar alguém vivo como feliz, na melhor das hipóteses, julguemo-lo uma pessoa bem aquinhoada.

Eu por muito tempo busquei um homem a quem pudesse realmente qualificá-lo de feliz! E, confesso, não consegui encontrá-lo. Entretanto, não consegui aceitar meu fracasso. Quiçá meu conceito de felicidade fosse equivocado. Conversei, então, com pessoas consideradas sábias, realizei peregrinações aos mais diversos livros, visitei distintas correntes filosóficas, e cada vez mais árduo se me demonstrava encontrar até mesmo o conceito de uma pessoa plenamente feliz.

Foi quando, ao final da busca, deparei-me com um interessantíssimo diálogo ocorrido lá pelo século sexto antes de Cristo, travado entre Creso,o  imperador Lídio, e Sólon, o primeiro dos Atenienses, conversa reportada pelo historiador Heródoto, que tomo a liberdade de contar aos meus amigos.

Transcorreram quase dois anos desde que Sólon partira da Ática, deixando a querida Atenas no auge de seu poder e prestígio. Isso se deu quando ele julgou, após muitos anos, seu trabalho de legislador concluído. Realmente, pelo que conhecemos dos políticos e magistrados, recusar-se a exercer o poder no auge da popularidade já faz de Sólon um ser humano no mínimo extraordinário.

Mas não somente isso. Após uma década de governança, o Sólon que saiu pelo mundo não possuía uma única dracma a mais do que possuía ao ser eleito Arconte de Atenas pelos ricos e pelos pobres de sua cidade. Outro dado de insofismável beleza!

“Envelheço aprendendo todos os dias coisas novas”, assim justificava publicamente a longa viagem que empreenderia. Aos mais íntimos, entretanto, ele confessou que se retirava para não ser obrigado a alterar leis que havia imposto, principalmente aquelas ao Partido dos Nobres; afinal, obrigara todos os cidadãos ao juramento de que as regras seriam cumpridas pelo período em que ele estivesse ausente de Atenas. E esse tempo, que duraria quase outros dez anos, foi o responsável pela consolidação das normas precursoras da democracia ateniense.

Sólon, dando o exemplo pessoal, reafirmava a crença de que “a beleza das leis cumpridas faz reinar por toda a parte a ordem e a harmonia”.

Antes de partir, como último ato, o maior dos atenienses criou o Tribunal dos Heliastas, um júri popular, ao qual os pobres poderiam apelar das decisões dos magistrados, escolhidos em conformidade com as novas leis não mais pelo direito de nascimento, mas pelo da riqueza obtida através do trabalho pessoal. “Muitas vezes os homens de poder cedem à injustiça e servem-se da política para roubar… Eles que deveriam ser os guardiões da religião, espoliam até mesmo os templos. Aqueles cuja conduta deveria ser de obediência à justiça, ofendem-na pelo apetite ilimitado do lucro.”

Sólon quando criou o tribunal como defesa do povo que ele tanto amava sabia, que se não o fizesse, “a cidade sucumbiria ante os mais poderosos e terminaria caindo nas mãos de um ditador.”

E assim posto, Sólon partiu para o Egito para conhecer os costumes das terras do Grande Faraó. Passados dois anos, já tendo visto tudo o que desejava, do delta às nascentes do grande rio, decidiu seguir viagem. Escolheu como próxima etapa a Lídia, terra da Ásia Menor, onde, dois séculos antes, criara-se pela primeira vez o dinheiro, graças à invenção da cunhagem em moedas do ouro e da prata.

A Lídia, ao tempo em que nos reportamos, atravessava um momento de euforia econômica. Fruto de campanhas guerreiras vitoriosas contra povos asiáticos de origem grega, Sardes, sua capital vivia, sob o Rei Creso, dias de fausto e poder. Creso, fiel ao espírito de todo déspota asiático, acreditava-se um bem-aventurado dos deuses, ele próprio um deus, a quem nada se poderia objetar e cujas vontades constituíam as leis. Ao saber por mensageiros da visita de Sólon, tão ilustre hóspede, o imperador ordenou festas e dedicou ao viajante toda uma ala de seu palácio real.

Sólon, para quem “tudo o que é natural é simples” e “o mais difícil é chegar à percepção inteligente da medida do invisível”, dispensou as duas dezenas de escravos colocadas à sua disposição, pois para as necessidades de hóspede ele já possuía seus poucos acompanhantes.

Entretanto, a incansável busca do conhecimento do ateniense não se contentou com o ambiente palaciano e buscou, no encontro com o povo das ruas, o entendimento dos costumes do país. Que desilusão! Fora os nobres que em Sardes habitavam o palácio real, os lídios eram simplesmente um “império de míseros escravos”, tão diferente de sua Atenas reformada!

De todo modo, após as festas em homenagem ao visitante, ornamentadas com todo o luxo oriental, finalmente Creso pessoalmente conduziu o hóspede para conhecer os seus tesouros pessoais que ocupavam parcela significativa do subsolo do palácio. Foi, então, perante todo aquele esplendor, sentado em confortáveis almofadas, que ocorreu o famoso diálogo a que me referi no princípio da narrativa, tão bem reportado por Heródoto.

Creso: “A tua sabedoria caminha à frente de teus próprios passos e alcança todo homem civilizado. Tuas célebres viagens te conduziram aos mais diferentes povos, às mais distintas civilizações. Diga-me, então, Sólon, qual o homem mais feliz que até hoje encontrastes?” Logicamente o soberano fazia esta pergunta por se julgar ele próprio o mais feliz dos mortais, já que tudo o que o dinheiro e o poder poderiam proporcionar ele o possuía a um piscar de olhos.

Sem titubear ou procurar bajular seu hospedeiro, respondeu-lhe Sólon: “É Telo de Atenas. Telo é o mais feliz dos mortais. Residindo numa cidade florescente, teve dois filhos lindos e virtuosos, e, cada um deu-lhe diversos netos que viveram muitos anos, e, depois de haver usufruído de uma fortuna considerável para nosso país, Telo terminou seus dias de maneira admirável: num combate de Atenas com seus vizinhos de Eleusis. Saindo em socorro de seus amigos, colocou em fuga os inimigos e pereceu gloriosamente. Os atenienses ergueram um monumento com o dinheiro do Estado e lhe tributaram grandes honras.”

Pode-se imaginar a decepção do orgulhoso Creso com a resposta de Sólon! No entanto, ele ainda insistiu: “Quem é, depois de Telo, o homem mais feliz que conheceis?”

“Cleobis e Biton”– respondeu o ateniense, insistindo em tratar o Rei Creso como um ser humano tal qual ele próprio se considerava. “Eram cidadãos de Argos e viviam de um pecúlio honesto. Sendo muito fortes, esses irmãos haviam conquistado a vitória nos jogos públicos. Celebrava-se naquela época em sua cidade uma festa em honra de Juno. A mãe dos rapazes, uma sacerdotisa da deusa, com dificuldade de locomoção precisava ir ao templo conduzida num carro, mas os bois tardavam a chegar. Então os irmãos, colocando-se as cangas nos ombros, conduziram a mãe no carro até o templo de Juno, distante mais de cinquenta estádios. Uma vez no local, cercados pela multidão, a mãe satisfeita e orgulhosa dos seus filhos, de pé junto à estátua da Deusa implorou que ela concedesse a Cleóbis e Biton a maior felicidade que pode honrar um mortal. Terminada a prece e após o sacrifício do festim solene, os rapazes adormeceram no próprio templo para não mais despertar. Os argivos ergueram estátuas a ambos e os consagraram a Delfos como homens perfeitos.”

Nesse momento Creso não mais conseguiu ocultar seu desconforto: “Ateniense, fazei tão pouco de minha felicidade, que me julgais indigno de ser comparado aos homens comuns? Não pudestes, com tudo que vistes julgar-me plenamente feliz?”

Respondeu-lhe Sólon: “Oh, Creso, assim me perguntas sobre o que penso da vida humana; poderia responder-te de outra maneira. Numa longa peregrinação pela terra vemos e sofremos muitas coisas desagradáveis. Dou a um homem setenta anos como o mais longo tempo de vida, o que serão vinte e cinco mil, quinhentos e cinquenta dias. Durante esses milhares de dias não encontrarás um que não traga um acontecimento semelhante aos outros. É preciso convir que o homem não é senão vicissitudes. Possuís riquezas consideráveis e reinas sobre um grande povo, mas não posso responder à tua pergunta sem saber se terminarás teus dias na abundância; pois o homem cumulado de riquezas e de poder não é superior ao que possui o necessário, a menos que a boa sorte o acompanhe e, que gozando de todas estas espécies de bens, termine venturosamente a existência. Nada mais comum do que a desgraça na opulência e a ventura na obscuridade. Um homem rico como tu está mais em condições de satisfazer teus desejos e suportar grandes perdas. Aliás admitindo que esse homem esteja no uso de todos os seus membros, goze de boa saúde, não sofra desgostos, seja feliz com os filhos; se a todas essas vantagens acrescentares a de uma morte gloriosa, aí terás o homem que procuras. Ele, sim, merece a classificação de feliz. Mas, antes da morte, evita julgá-lo; não lhe dê este nome; considera-o, somente, bem aquinhoado.

Por aí terminou a entrevista e, após dois ou três dias, Sólon, sagaz em perceber certos recados, resolveu deixar a Lídia e seguir viagem, para maior sossego de Creso e dele mesmo.

Anos após os persas de Dario deram combate à Lídia de Creso e a derrotaram. Creso caiu prisioneiro e tornou-se, por beneplácito de seu vencedor, um despojado súdito do Grande Rei.

Obs.: Extraído do livro de contos “As Máscaras de Perséfone”, de autoria de Carlos Russo Jr.

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